Blog que retrata os acontecimentos do mar e porto de Viana e arredores, nos bons e maus momentos, dos pequenos aos grandes senhores.

16
Set 07
Moçâmedes 1972. Era na altura o Imediato do arrastão de pesca "TROPICAL" da praça de Aveiro, propriedade da Sociedade de Pesca Miradouro, SA. que operava nos mares do Sudoeste Africano.
Moçâmedes era o porto base onde efectuavamos os abastecimentos e descargas do pescado para os frigoríficos da ARAN (Associação dos Armadores da Pesca de Angola).

 
Em Moçâmedes
A pesca efectuava-se para sul do paralelo 18' 00" S em fundos arenosos onde abundava a pescada (marmota) em grandes quantidades. O tamanho da marmota era por vezes de baixo calibre o que motivava o desperdício de grandes quantidades que eram deitadas novamente ao mar, para gáudio dos leões marinhos que abundavam nessa zona.
Por vezes acontecia quando da manobra de virar a rede, um ou mais leões marinhos serem apanhados pela rede. Era um pandemónio a bordo. Depois de despejado o saco do peixe no parque de pesca, o animal encurralado, fora do seu ambiente natural, com mais de quinhentos quilos, esmagava as frágeis marmotas, tentando libertar-se do cativeiro e dando urros impressionantes de desespero. A princípio não sabíamos o que fazer, o mestre de redes , o contra-mestre e os pescadores tentaram passar um laço na tentativa de içarem o leão para o convés e arrastá-lo para a rampa da popa, mas o corpo roliço  do animal impossibilitava essa tarefa.
Quando  isto acontecia todo o pescado estava perdido e gastava-se imenso tempo. A solução era matar o animal. Embora fosse um acto repugnante tinha de ser tomada essa atitude para bem do animal que estava em sofrimento e acabava por morrer  lentamente e também porque o navio tinha de continuar a pescar. Era encarregue dessa ingrata missão o mais corajoso e ousado.

 

A manga do saco com peixe malhado

 

Numa das frequentes idas a Moçâmedes, normalmente de quinze em quinze dias, para descarregar as cerca de 250 toneladas de peixe, carga máxima do navio, fomos informados que o navio ia fazer uma adaptação dos paióis da popa, normalmente utilizados como depósito de material de apoio à pesca, redes, cabos, fio, esferas de borracha para arraçal, etc., para camaratas de "pescadores".
A razão desta transformação tinha a ver com a admissão de doze tripulantes indígenas para filetar a marmota partindo do pressuposto que os mesmos eram especialistas no manuseamento de facas, como era o caso das facas de filetar. Ainda estou para saber a origem desta informação, porque dos nativos que recrutei durante as várias estadias, não encontrei grande habilidade e agilidade na filetagem da marmota.
Coube-me a mim a tarefa de escolher os doze novos "recrutas" a filetadores dentre as dezenas que formavam em fila junto ao portaló do navio, aguardando pacientemente debaixo do sol intenso a chamada.

Uma sacada de 20 toneladas

Os critérios que estabeleci para seleccionar os candidatos a embarcar foram: 1-ter cédula marítima; 2-ter boa compleição física, portanto apresentar um aspecto saudável. Não foi difícil obter os primeiros dez pretendentes. Quando procedia à segunda escolha para apurar os dois que faltavam um dos que estavam ainda na fila adiantou-se e, decidido, apresentou-se e pediu humildemente para que o recrutasse porque precisava muito de ganhar dinheiro para sustentar a família, como todos os outros. Apreciei a forma genuína, natural e humilde como se dirigiu e mirei-o para apurar do aspecto físico parecendo-me franzino mas teso. Recrutei o 11º.elemento e chamei-o de parte dizendo-lhe: - Vou-te contratar porque me pareceste sincero e natural, mas com uma condição: - se não cumprires com o trabalho não te pago. Acenou com a cabeça em sinal afirmativo, agarrou-me na mão e intentou beijá-la, acto que repeli de imediato.
Terminados os trabalhos de instalação dos beliches nos aposentos improvisados nos paióis renovados e ventilados como convinha, para receber os novos tripulantes, candidatos a filetadores, largamos de Moçâmedes em direcção aos pesqueiros, começando por largar a rede a sul do paralelo 18 por forma a fazer um lanço (operação completa de largar e virar a rede de pesca), apanhando a curva do 19 ( neste ponto o fundo faz uma curva pronunciada tipo "S" onde normalmente se faziam boas capturas).
A pesca era abundante e, se tudo corresse bem, como esperavamos, dentro de doze a quinze dias estaríamos de volta a Moçâmedes. O 12º elemento que escolhi estava a cumprir conforme o prometido. Tinha recomendado ao contra-mestre que estivesse de olho nele e eu próprio, quando saía de quarto, passava pelo parque de pesca ver como corriam os trabalhos e punha o olho de lado, disfarçando, para não dar azo a especulações dúbias e verificava que o rapaz se adaptava ao ofício e era despachado.

O parque cheio até ficar peixe no convés

Passaram-se dois ou três dias e o mestre de redes, durante o meu quarto diurno de serviço( como éramos só dois oficiais da ponte, capitão e imediato, os quartos eram de seis horas cada, eu fazia os quartos do meio dia às seis da tarde e da meia noite às seis da manhã, enquanto o capitão fazia os quartos das seis da tarde à meia noite e das seis da manhã ao meio dia), o mestre de redes veio ter comigo à ponte com ar de caso e perguntei-lhe: - Então mestre que cara é essa? Não me diga que está doente?
Eu não senhor imediato, mas temos um dos novos que nos vai fazer ir para terra mais cedo. Huumm?
Como assim, não me diga que é o "cantinflas"? ( este foi o nome com que o "baptizaram" por ele caminhar como o célebre comediante francês).
Parece que é bruxo senhor imediato !!! -retorquiu o mestre de redes espantado com a minha pontaria. De facto eu já tinha observado, das vezes que ia ao parque de pesca, o esgar de dor que o rosto moreno do pobre nativo deixava transparecer apesar de pretender disfarçar desviando o olhar.

O "Cantinflas" comigo

Ele não tinha coragem de se queixar em face da promessa que me fizera no acto de embarcar, porque queria chegar ao fim da viagem para receber o dinheiro, móvil que o trouxera ali.
Antes de embarcar trabalhava na estiva a carregar sacos de milho no porto, mas não era um emprego certo e ganhava pouco, 2$50 ao dia, enquanto no navio comia, dormia e ganhava 20$00 por dia, quase dez vezes mais, daí a enchente de pretendentes a um lugar a bordo.
Como me confidenciou mais tarde, com o dinheiro da viagem podia comprar várias cabeças de gado que permitiam sustentar os cinco filhos e as duas mulheres que tinha lá na terra para os lados de Nova Lisboa.
Quando terminei o quarto de serviço fui directamente ao paiol da popa do lado de estibordo, onde encontrei o "Cantinflas" estirado no beliche( cama estreita para ser instalada no camarote), com a perna direita esticada sobre a tábua da borda. Fiquei horrorizado com o que vi. A perna estava esburacada e um misto de pus e sangue saía pelas fendas expostas. Por baixo da perna, não para aparar a porcaria que brotava da perna, mas para suavizar o peso da perna sobre as feridas da barriga, tinha colocado uma toalha sobre a qual escorria o líquido nauseabundo e podre. Um cheiro pestilento invadia todo o compartimento, apesar da ventilação forçada, recentemente colocada, para tornar habitável aquele espaço, antes destinado a abrigar os apetrechos de pesca. Fiquei desolado e, confesso, desorientado, sem saber o que fazer.
Em toda a frota portuguesa que operava nesta zona, não existia a bordo de qualquer navio nenhum médico ou enfermeiro. Normalmente quem faz os curativos às feridas que habitualmente costumam aparecer, é o imediato.
Coube-me a missão delicada e ao mesmo tempo ingrata de tentar remediar o mal que alastrava por toda a perna do infeliz  e pobre homem.
Apesar do sofrimento estampado no rosto , o “Cantinflas” mostrava sempre um sorriso quando antes de almoçar lhe ia fazer o tratamento, retirando das pústulas ulcerosas meio balde de pestilenta matéria contaminada e mal cheirosa que retirava com as compressas e me deixava à beira de vomitar.
Durante dez dias quase não comi tão enojado ficava após o curativo. Um pão com manteiga e um copo de leite era o meu almoço. De dia para dia ia notando as melhoras e isso motivava-me a continuar. Por sua vez o infortunado nativo acatava de bons modos todas as instruções que lhe dava para precaver infecções que viessem obrigar a uma arribada forçada e consequentemente a perda de pesca para o armador e em especial toda a tripulação que dependia da quantidade de peixe processado e estivado no porão.
A pesca era abundante e o pessoal não dava escoamento ao peixe capturado. Chegou-se a parar de pescar, metendo a rede dentro e fundeando até processar a maior parte da marmota, mas a capacidade de congelação era insuficiente e não havia outra solução senão alijar( por pela borda fora) pescado que não se encontrava já em boas condições devido ter muito tempo sem eviscerar como também porque a marmota é um peixe muito sensível e pouco resistente quando se encontra prensado um sobre o outro muitas horas.
O “Cantinflas” vivia tudo isto com notória preocupação e pesaroso por não poder ajudar. Uma a uma as feridas iam secando e fechando e o rapaz queria trabalhar. Dissuadi-o e, num tom ameaçador, proibi-o de sequer tentar ir ao parque de pesca e andar sobre a perna pondo em risco a recuperação e todo o meu trabalho. Para suavizar o seu sofrimento e fazê-lo sentir útil, permiti que descascasse batatas na cozinha, sentado e com a perna apoiada.
Em treze dias apenas as duzentas e cinquenta toneladas que com a habilidade do contra-mestre era possível estivar no porão, tinham-se completado e regressamos a Moçâmedes para efectuar a descarga para os frigoríficos da ARAN. As feridas do “Cantinflas” estavam saradas, mas era preciso ir com ele ao médico para ser observado e fazer um diagnóstico.
Logo que o navio atracou o rapaz ficou eufórico e queria ir para terra sem querer saber de ir ao médico. Na opinião dele estava curado e eu era o melhor “médico” do mundo. Não queria saber de mais nada. Eu tinha-lhe salvo a vida e só isso contava para ele. Naquele seu jeito de andar à “Cantinflas”, movia-se no convés de um lado para o outro, feliz por ter recuperado o andar de que estivera privado tantos dias por impossibilidade sua e por imposição minha.
Como não havia doentes com gravidade só no dia seguinte o médico nos atendeu. No final da consulta e depois de explicado o acontecido, o médico deu-me os parabéns pelo trabalho realizado e afirmou rematando – “nem o melhor enfermeiro fazia melhor, senhor imediato”. Fiquei naturalmente contente por este reconhecimento, mas mais por ter conseguido salvar a perna do malogrado “Cantinflas”.
Quando procedia ao pagamento da viagem aos homens recrutados especificamente para o processo de filetar a marmota mais pequena, o ”Cantinflas” não queria receber.
- Siores mediato, não podê recebê porque não trabalhá . E teimava, dizendo que ainda tinha a pagar por ter sido tratado. Comoveu-me este carácter recto e humilde, agarrei-lhe na mão e “obriguei-o” a aceitar contra a sua vontade.
A estadia foi mais demorada do que prevíamos porque havia outros navios à nossa frente a descarregar e um navio transportador frigorífico, salvo o erro o” Baía de S. Brás”, a carregar peixe com destino à Metrópole.
Na véspera da partida para nova viagem o “Cantinflas” veio falar comigo, cabisbaixo, envergonhado e triste.
- Siores mediato esculpa, tê vergonha, está triste, ma na podê i na viagem.
- Mas porquê “ Cantinflas”? Nesta altura toda a gente a bordo o tratava por “Cantinflas”, alcunha que ele adorava.
- Siores mediato, mia mãe tá morrê, tenho que i vê ela. E começou de chorar, soluçando, num comovente estado de alma que contagiava e fazia vir as lágrimas aos olhos.
O “ Cantinflas” lá foi para a terra e nós para o mar. Como já não havia tempo para recrutar substituto e para efectuar a matrícula fomos para o mar com menos um filetador. Quando a viagem terminou e atracamos, lá estava no cais o “Cantinflas” à espera do navio, sorridente e feliz.
Mal entrou a bordo, veio directo ao meu camarote eufórico querendo transmitir-me algo importante.
- Que se passa “Cantinflas”? perguntei surpreendido pela forma como ele se dirigiu a mim.
- Siores mediato “Cantinflas “ tem presente pa siô. Refutei imediatamente qualquer presente e mandei-o dar uma volta e que não me chateasse.
- Ma siô na podê recusá é ofensa. É milhó prenda que pode ofrecê.
O “Cantinflas” saiu cabisbaixo, amuado com a minha recusa. Eu sabia a natureza do presente e por isso recusei.
É habitual entre os nativos, em sinal de reconhecimento por algo de importante que fazem por eles, comprar uma rapariga virgem para oferecerem de presente a outra pessoa. Isto faz parte da cultura deles, ficam muito ofendidos quando tal retribuição não é aceite, como foi o meu caso. Eu já tinha previsto que tal iria acontecer, mas era contra os meus princípios aceitar tal presente, mesmo que isso fosse de encontro às tradições culturais da etnia a que ele pertencia.
A bordo, fui censurado por alguns, mas também louvado por outros. De qualquer forma, fiquei de consciência tranquila por assim ter decidido.
O “Cantinflas” não foi na viagem seguinte, tendo ficado ofendido comigo pela rejeição. Segundo a tradição cultural do seu povo é um ultraje e uma ofensa imperdoável que devia ser remida através duma luta entre os dois.
Mais tarde vim a saber que o “Cantinflas” regressara à sua terra e não mais embarcara.
 
 

 

 

publicado por dolphin às 15:36
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