Blog que retrata os acontecimentos do mar e porto de Viana e arredores, nos bons e maus momentos, dos pequenos aos grandes senhores.

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Abr 07

Na minha aldeia ainda se mantém vivas as tradições pascais.

Já lá vai o tempo em que menino e moço, calcorreava as veredas e os caminhos tortuosos dos lugares recônditos da minha aldeia, badalando a campainha na frente do compasso pascal. Anos mais tarde, mais maduro, era-me dado o privilégio de ser o portador da caldeirinha da água benta que o sr . Prior utilizava para benzer as pessoas e as casas.

Acabada a missa da manhã, na sacristia da capela da N. Sra. das Necessidades, padroeira da aldeia, procedia-se à tarefa de equipar os participantes nomeados pelo sr . Prior, dos paramentos e utensílios próprios da solenidade, a campainha era atribuída ao rapazote mais novo, a seguir era o rapaz da caldeirinha, depois o homem das oferendas ou dos ovos (porque nesse tempo as ofertas dos paroquianos para o sr . Prior eram feitas em ovos), o paroquiano mais idoso  do grupo e mais considerado na aldeia era o escolhido pelo sr . Prior para transportar a Cruz e dá-la a beijar aos paroquianos. Uma opa geralmente de cor rubra ou branca, constituía a indumentária dos folareiros (assim chamados por serem  os cobradores do folar do sr . Prior), por fim o sr . Prior munido de um saco de amêndoas para as crianças e dum maço de santinhos com orações para dar às moças casadoiras.

Por caminhos e calçadas, subindo e descendo outeiros, atravessando ribeiros e corgos de água cristalina, por entre quintais adentro, subindo as escadas de xisto comido pelos tamancos e chancas ferradas dos aldeões, entrando e sujando de lama as casas de soalho lavado com sabão amarelo e encerado pelas mãos fortes das donas de casa, na véspera ou antevéspera, calcando as folhas e flores cheirosas, propositadamente colocadas nas casas para sinalizar a entrada e em louvor do Senhor, o compasso Pascal ia progredindo.

A volta da manhã era mais curta, os lugares de cima (que ficavam situados acima da capela) tinham menos fogos que os lugares de baixo, apesar do trajecto ser mais acidentado, mas por outro lado os intervenientes estavam ainda com destreza nas pernas e ansiavam por chegar mais depressa a casa do tio Martins ( tio do meu pai ) onde decorria o almoço.

O tio Martins fazia questão de presentear o sr . Prior e comitiva pascal com um lauto banquete pascal, constituído por canja de galinha, rojões, vitela e cabrito assado no forno, rematado por sobremesa de leite creme, arroz doce e pão de ló tudo bem regado com o melhor vinhão da pipa, servido em jarros de porcelana branca para avivar a cor do precioso néctar , previamente provado na adega pelos homens da casa, enquanto as mulheres se atarefavam na cozinha, deitando as assadeiras de carne ao forno e as raparigas queimavam o creme com a pá de ferro.

Era uma tradição que tinha herdado dos seus antepassados e que à hora da morte do pai lhe prometera manter e passar aos seus descendentes, ufanava-se de referir aos presentes, contando histórias antigas passadas com outros padres e folareiros . Quando o padre era novo na terra ou se tratava de um seminarista então as histórias eram mais demoradas tinham de ser contadas com todos os pormenores. Nós, os mais novos, aturávamos estes contos , por respeito e consideração, mas desejosos de nos levantarmos da mesa e desentorpecer as pernas de tanto tempo sentados. Como eu era da casa, arranjava um pretexto para ir a minha casa, ali ao lado, muitas vezes para avisar que já tínhamos terminado o repasto.

A casa dos meus pais era a seguinte, mas quando se tratava de um padre novo ou então o meu pai queria sair de tarde, pedia ao sr . padre para fazer a visita antes de irmos almoçar, pois já sabia da palestra do tio depois do almoço.

A volta da tarde apesar de ter um trajecto mais plano e a descer em algumas partes, era de longe o que custava mais, não só porque tinha mais casas para visitar como também já pesava a barriga e a cabeça estava um pouco tonta dando azo às histórias que no ano seguinte se contavam. Não era o meu caso porque nesse tempo ainda não estava autorizado a beber vinho, mas que alguns cambaleavam um pouco isso por vezes sucedia, fruto da conversa e lá vai mais uma pinga, para amaciar a garganta seca.

Com algumas nuances próprias da modernização ocorrida ao logo destes quase cinquenta anos da minha vida, as tradições pascais não se alteraram muito.

Mantenho a tradição de passar a Páscoa em família por uma questão de unidade e saudade. Unidade para manter unida a família e dar o exemplo aos meus filhos e aos netos, para conviver com os restantes elementos da família, mãe, irmãos, sobrinhos e manter acesa a chama das origens que é muito importante. Saudade para reviver os tempos idos da mocidade, para rever vizinhos e amigos que como eu mantêm a tradição de passar as festas Pascais na terra natal.

 

publicado por dolphin às 00:27

Um texto bucólico a fazer lembrar Villaret: "Tocam os sinos da torre da igreja, há rosmaninho e alecrim pelo chão ...".

Temo no entanto que a tradição, por muito saudosa que seja, vá caír em esquecimento. O materialismo crescente vai fazer soçobrar as questões da fé e viremos a encomendar visitas pascais por nº azul - só espero estar enganado nesta minha previsão, quanto mais não seja pelos belos repastos de cabrito e leite creme.

Um abraço para o tio, do sobrinho da aldeia.

Armando Alves a 12 de Abril de 2007 às 22:52

Agradeço o teu comentário, quanto ao materialismo crescente temos de o combater com solidariedade e disponibilidade. Passa por cada um de nós esse combate no dia a dia, em cada momento. Não podemos atribuir só aos outros os males do mundo, a missão é de todos, se cada um fizer o que lhe pertence menos fica por fazer e o mundo será melhor.
Até lá vamos ficando pelo menos com as recordações.
dolphin a 15 de Abril de 2007 às 12:11

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