Blog que retrata os acontecimentos do mar e porto de Viana e arredores, nos bons e maus momentos, dos pequenos aos grandes senhores.

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Jun 07
PESCA DO BACALHAU – 1ª VIAGEM
 
O AVÉ MARIA
 

O navio “GANDA”, pertencente à CCN (Companhia Colonial de Navegação) estava atracado em Lisboa na Doca de Alcântara (Espanhola) no cais do lado sul, junto à sede da Companhia quando o cap. Manuel Ferreira da Silva (Sardo) entrou pelo meu camarote na companhia do comissário Pestana dos Santos, filho do despachante oficial do mesmo nome, com escritório na Rua do Arsenal, ali mesmo em frente ao Zarzuela (bar restaurante que habitualmente frequentava quando no Curso Geral de Pilotagem).
A princípio fiquei surpreendido e naquele momento vieram-me à cabeça situações dramáticas que daí a pouco bani do meu pensamento, face à pergunta do cap. Ferreira da Silva:
- Queres ir ao bacalhau no Avé Maria ?
Não sabia o que dizer, fiquei perplexo e antes que tivesse tempo de responder ele completou:
- Sabes, tenho conversado com o teu pai e ele acha que ganhas pouco na Marinha de Comércio, comparado com o que se ganha na pesca do bacalhau. Tenho uma vaga de Imediato no meu navio Avé Maria, o capitão é da minha confiança e um bom profissional, vais em boa companhia, já o conheces porque to apresentei na seca, é o Manuel Machado.
Acenei com a cabeça em sinal de assentimento relativamente a conhecer o capitão e quando ia para falar, ele continuou :
- Vais ganhar bastante mais do que o que ganhas aqui porque eu sei o teu vencimento, o teu pai disse-me quanto ganhas e vais ganhar o triplo.
- Mas, senhor capitão, eu ainda estou no princípio da minha vida de mar e não tenho experiência alguma da pesca do bacalhau; respondi atónito, face a tamanha e surpreendente oferta. Ainda não estava refeito do impacto que tinha causado em mim esta súbita e inesperada oferta de emprego, quando ele ordenou:
- Vais falar com o capitão do navio, se possível ainda hoje, pedes-lhe o bilhete de desembarque e vê se consegues estar amanhã na minha casa na Gafanha da Nazaré para te apresentar ao Capitão do Ave Maria. Quando chegar ao escritório do senhor Pestana vou telefonar ao teu pai a dar-lhe a notícia. Estou certo que ele vai ficar contente.
Ia tentar justificar-me, argumentar que não podia tomar essa atitude perante o capitão do “GANDA” em cima da hora, o navio partia para África dentro de dias, não era uma acção muito digna da minha parte, o capitão Armando Artur Soares Machado tinha sido como um pai para mim, um amigo, um professor e não merecia que lhe fizesse isto tão abruptamente, mas de nada valeu, o capitão Ferreira da Silva acenando ao sr. Pestana dos Santos para descer as escadas, ia dizendo:
- Então até amanhã, tenho de ir andando porque tenho umas coisas ainda a tratar em Lisboa e não quero perder o comboio, porque amanhã tenho muitas coisas a tratar em Aveiro. Com dois navios a apetrechar há muito trabalho. Amanhã lá te espero para te apresentar ao capitão Manuel Machado, porque para a semana são as matrículas nos portos do norte. Referia-se aos portos do Douro (Afurada), Vila do Conde (Caxinas), Póvoa de Varzim, Esposende, Viana do Castelo, Vila Praia de Âncora e Caminha.
Acompanhei-os à escada de portaló e fiquei a pensar, confuso, sem saber o que fazer e como fazer. Sabia que o comandante Armando Machado costumava passar pelo navio por volta do meio dia. Por um lado agradava-me a ideia de ir à pesca do bacalhau, mas não nesta altura e desta forma, preferia ir quando tivesse mais alguma experiência de mar, tinha pensado em tirar a carta de Piloto de 2.ª classe e depois então fazer uma viagem num arrastão de popa como piloto, por outro temia desempenhar o lugar de imediato, ainda para mais num navio de pesca à linha, sabia da dureza da vida a bordo e ainda não me sentia preparado para enfrentar tarefa tão importante e árdua.
A referência ao vencimento manietava-me o pensamento e não me deixava decidir em conformidade com o meu querer. Parecia que tinha sido propositada a menção do dinheiro que iria ganhar na viagem. O capitão F. da Silva sabia que o meu pai se endividara para eu e o meu irmão estudarmos e tirarmos um curso, a amizade que havia entre as nossas famílias, possibilitara ao meu pai em certas alturas de dificuldade para pagar o colégio, recorrer a ele para cumprir com essas obrigações.
Tinha que encontrar uma solução antes que o comandante do “GANDA” chegasse. Era de facto muito dinheiro que estava em jogo e a possibilidade de enveredar por uma carreira que sempre ambicionara, por outro lado era faltar aos meus princípios de dignidade, de integridade moral que sempre me fora incutida pelo meu pai, mas como, meu Deus, como?
Sentia-me baralhado, impotente, perdido no meio do oceano como um náufrago, abandonado à sua angústia, sem solução para tomar no imediato e esse imediato era dentro de uma hora quando chegasse o capitão Armando Machado. Como é que havia de abordar o assunto? Qual iria ser a reacção? Tudo isto impedia-me de racionar friamente, sem pressas e sem pressões.
A situação económica pesou substancialmente na minha decisão, aliada à referência que o capitão Ferreira da Silva fez do meu pai, deixando para traz os princípios que sempre orientaram a minha vida, mas que com certeza o meu pai iria atenuar com bons e sábios conselhos, como o fez mais tarde e que me restituíram essa dignidade e moralidade que na confusão da minha mente pensava infringir ao pedir ao capitão a cessação do meu contrato através do pedido de passagem do bilhete de desembarque.
Na verdade, mais tarde e raciocinando com serenidade, não infringira nenhuma regra ou código de conduta, porque o meu contrato tinha terminado quando o navio chegara a Lisboa e ainda não tinha assinado o rol de matrícula para nova viagem, que simbolizava em termos marítimos a assinatura de um novo contrato.
Fiquei mais calmo e com a consciência tranquila, quando no dia seguinte, instalado confortavelmente no comboio que me levaria até a Aveiro, fumava um cigarro tranquilamente deixando espairecer um sorriso de prazer reconfortante, antevendo o reencontro com o capitão Ferreira da Silva e sua esposa D. Bárbara quando chegasse a casa deles com a novidade, já esperada, de embarcar num navio da Empresa de Pesca de Lavadores, Lda., assim se chamava a firma que detinham em sociedade com o mestre Manuel Maria Bolais Mónica e a D. Utelina, viúva do Sr. Conde, pais do amigo Tozé Conde, mais tarde Eng.º Conde que veio a ocupar o seu lugar na empresa, já eu estava em Viana do Castelo nos Pilotos da Barra.
O capitão Ferreira da Silva veio-me buscar à estação da CP em Aveiro no seu Opel último modelo que fazia questão em trocar sempre que surgia no mercado o mais moderno.
- Fizeste bem Manuel, não te vais arrepender, o teu pai está contente, já telefonei a dar a notícia. Amanhã vais a casa depois de te apresentar ao capitão Manuel Machado e receberes as instruções que ele tem para te dar. Não te esqueças que agora és o Imediato do Ave Maria e como deves calcular é um lugar de muita responsabilidade.
Enquanto ele falava eu ia pensando que não tinha transmitido ao meu pai a minha decisão, preferia transmitir-lha pessoalmente, ler-lhe nos olhos o seu assentimento e consentimento, sabia que isso lhe iria dar prazer e alegria, foi uma coisa com que sempre sonhara, ouvira-o dizer embevecido que trabalhava para que os filhos um dia pudessem ter uma vida melhor que a dele.
A senhora D. Bárbara, recebeu-me com uma doçura e carinho inolvidáveis, tecendo elogios e augurando um futuro risonho e promissor, relembrando tempos em que professora na minha terra, na serra da Senhora da Saúde, lá para as bandas de Cambra,  esperava pacientemente, sem notícias, a vinda do marido, então capitão do lugre “D. Dinis“ da Empresa Pascoal e Filhos, Lda. Que tempos, sem nada saber durante meses a fio, só quando o navio chegava à barra é que se sabia se tudo tinha corrido bem na viagem, se tinha morrido alguém, o navio arvorava uma bandeira preta em sinal de luto. Hoje é tudo muito diferente, há a rádio, mandam telegramas e cartas pelo Gil Eanes, navio hospital de apoio à frota bacalhoeira à linha, a frota branca como é conhecida em St. John’s da Terra Nova, por o costado dos navios ser pintado de branco. Quem diria que um dia o filho do Armando, o Manuelsinho, como ela carinhosamente me tratava, havia de ser um oficial Imediato do Ave Maria. Nem ela, nem eu, supunha naquele momento que tal não ia acontecer.
publicado por dolphin às 19:06
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Boa noite, sou a Conceição Machado e encontrei, por um feliz acaso, uma referência ao meu Pai, Armando Machado, que muito me comoveu. Obrigada pelas suas palavras e pelo seu blog que achei muito interessante.
conceição machado a 26 de Setembro de 2012 às 21:46

Boa noite,

Obrigado pelo comentário. Foi pouco o tempo que convivi com o seu pai, depois, a vida do mar separou-nos e não mais tivemos oportunidade de nos revermos.
dolphin a 26 de Setembro de 2012 às 22:30

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