As Matrículas
A apresentação ao capitão Manuel Machado foi fria e tensa, apesar de já nos conhecermos informalmente como amigo do capitão Ferreira da Silva, das minhas idas à seca por ocasião das férias do Natal, porque nas férias grandes era impossível encontrá-lo, estava nos mares da Terra Nova ou Groenlândia.
Traçou-me o panorama e o programa da próxima semana quando devia apresentar-me ao serviço e que consistia nas matrículas dos pescadores da zona norte, conforme me havia já referido o capitão Ferreira da Silva.
O capitão Manuel Machado combinou apanhar-me em Oliveira de Azeméis, ponto de passagem a caminho da Capitania do Douro, primeiro local de matrícula, previamente combinada entre as partes. Acompanhavam-no o sr. Dias, guarda-livros (contabilista) da empresa e o ZéTó, escrivão, que habitualmente era recrutado para estas tarefas.
No Douro a matrícula foi rápida, apenas dois pescadores da Afurada, pertenciam à tripulação do Ave-Maria. A próxima paragem era em Vila do Conde, aí sim, concentrava-se a maioria dos pescadores, verdes e moços. Estavam concentrados à porta da Capitania aguardando a chegada do senhor capitão. Uma algazarra enorme à nossa chegada, mal o carro estacionou em frente à capitania, abeiraram-se do capitão que a custo saiu do automóvel, tantos eram os que queriam fazer pedidos e exigências:
- Ó senhor capitão veja se me leva o meu irmão de moço, o senhor prometeu-me!
Enquanto o capitão ia tentando dirigir-se para a porta da capitania, outro ameaçava-o:
- Olhe que se o meu primo não for de verde eu não vou na viagem, tome sentido!
E as perguntas e “ameaças” sucediam-se em catadupa, todos querendo chamar a atenção do capitão que pacientemente ia atendendo e sossegando os mais inconformados.
-Este é que é o novo Imediato? Veja lá se aponta bem o peixe, homem de Deus! Olhe que é o nosso ganha pão. E com este mar de questões, conseguimos finalmente chegar dentro da capitania, onde nos esperava o escrivão, já conhecido do capitão doutros anos.
-Vamos então à matrícula senhor capitão? Dizia o escrivão e lá começou a chamar um a um os pescadores primeiro, depois os verdes e por fim os moços, voltando a surgir as exigências e as negas de embarcar ( se…isto, se… aquilo), sendo necessário pôr ordem por vezes aqueles que se exaltavam por não conseguirem fazer valer as suas pretensões.
Alguns pescadores poveiros devido à proximidade da Póvoa de Varzim, apareciam para reivindicar direitos e exigir coisas antes de chegar a vez de assinar a matrícula. Era uma estratégia já conhecida do capitão que há muito sabia destes truques e a todos dava resposta duma forma sábia e convincente, não permitindo abusos nem se deixando levar por intimidações.
- Devemos tratar todos por igual, não nos devemos deixar levar na conversa, nem prometer nada: - dizia-me o capitão durante a viagem para norte.
- Se eles nos apanham um fraquinho nunca mais nos largam com exigências e chantagens. É preciso ser firme e determinado, não vacilar.
Antes de matricular na Póvoa de Varzim, fomos almoçar num restaurante poveiro já conhecido de anos anteriores, quer do capitão, quer do senhor Dias, que fazem este percurso há anos e experimentaram outros restaurantes, acabando por escolher este porque tem bom peixe a gosto de todos e fica perto da capitania.
O panorama das matrículas na Póvoa não diferiu muito das de Vila do Conde, com a vantagem de não haver tanta pressão, os queixosos e os reivindicativos, já tinham feito as suas queixas e reivindicações em Vila do Conde de manhã e, ou já tinham o que queriam ou chegaram à conclusão que de nada adiantava reclamar ou exigir porque o capitão não cedia a chantagens.
Seguiram-se as matrículas em Esposende, Viana do Castelo e Caminha, que demoraram pouco, porque o número de pescadores a matricular era reduzido, um, dois, três no máximo. O grosso dos pescadores concentrava-se em Vila do Conde (Caxinas) e na Póvoa de Varzim.
Havia ainda outras matrículas a fazer dos pescadores a sul de Aveiro, Figueira da Foz, Nazaré, Peniche e os do Algarve, normalmente da Fuzeta, mas como o navio ia a Lisboa abastecer para a viagem essas matrículas eram lá feitas.
Durante a estadia do navio em Aveiro, na semana de serviço, hospedava-me em casa do sr. Capitão e da D. Bárbara, era uma imposição deles, levavam a mal se eu lhe fizesse essa desfeita.
Um dia à noite, ao jantar, o capitão F. da Silva disse-me:
- Já não vais no Ave Maria, vais de piloto para o “Lutador”. O Lutador era um moderno arrastão de popa que eu conhecia bem porque ainda estudante na Escola Náutica, tinha-o visitado nos Estaleiros de São Jacinto, antes da viagem inaugural, durante as provas de mar e conhecera o capitão Luís António, o imediato Peixoto e o piloto Arménio Figueiredo.
Fiquei mais uma vez surpreendido, mas contente, porque era isto que sempre ambicionara, ainda nem pensava entrar na Escola Náutica, fruto da minha convivência a bordo dos navios durante as férias que passava em casa do sr. Capitão e mais tarde das conversas com os colegas de Ílhavo e Aveiro no colégio de Albergaria.
- Mas senhor capitão, quem me vai substituir no Ave Maria? – perguntei perplexo, pois sabia da dificuldade em contratar oficiais para os navios de pesca à linha, cuja sobrevivência estava prestes a terminar, por obsolescência do tipo de pesca, por falta de pescadores e devido à dureza e pouca produtividade comparada com a pesca de arrasto.
- Cada coisa a seu tempo, temos agora é de resolver o problema do Lutador, o imediato Peixoto despediu-se, vai para os Pilotos da Barra, o Arménio passa a imediato e tu vais preencher o lugar de piloto deixado vago pelo Arménio. Além disso é melhor para ti, é a pesca do futuro e vais para um navio novo e que usa tecnologia moderna.
Assim disse e assim fez, eu não tinha voto na matéria, limitei-me a aceitar. A procura por lugares num popa era feroz, eram mais de sete cães a um osso, como se costuma dizer. Estava-me a ser oferecido um lugar de mão beijada, sem que tivesse movido uma palha para o conseguir. Porquê contestar ou recusar?
O capitão Manuel Machado também não fez a viagem no Ave Maria, resolveu rumar a Luanda, mas antes teve a amabilidade de me endereçar um cartão de despedida e uma fotografia do Lutador.


Antes de partir para Luanda ainda me enviou outro cartão de despedida. Fiquei sempre a pensar que um dia nos iríamos encontrar num navio qualquer o que não chegou a acontecer.

