Eramos o grupo de sobreviventes mais próximo do São Jorge. À nossa volta só viamos mar e o navio em chamas, cujo clarão iluminava uma distância de cerca de 200 metros, não mais do que isso, devido ao espesso nevoeiro que nos envolvia. Do Novos Mares e dos outros náufragos nada sabíamos, mas deviam estar como nós, ao sabor das ondas geladas no meio do oceano.
Enquanto nos organizavamos no estabelecimento das tarefas a executar por cada membro da "embarcação" insuflável, um estampido despertou-nos e começaram as explosões dos bidões de gasolina. Era o fim do São Jorge, as labaredas aumentavam, toda a área da popa estava em chamas de cores diversas em resultado dos diversos materiais combustíveis. O tabuado da rabada começou de rebentar até ao cadaste, saltando tábuas a arder para o mar gelado. A água começou a entrar pela popa e o navio lentamente começou a levantar a proa para o céu como que a implorar misericórdia. A roda de proa estava fora d'água e toda a popa estava metida começando a apagar-se as labaredas que instantes antes consumiram a gasolina e outros materiais inflamáveis. Como que num fôlego o mar engoliu o navio e tal como eu previa, uma corrente forte puxou-nos naquela direcção. Ficamos a rodar naquele remoinho provocado pela sucção do navio e tudo ficou calmo à nossa volta, num silêncio fúnebre apenas quebrado pelo marujar da ondulação contra o costado emborrachado da frágil jangada.
O Imediato e o enfermeiro
E agora? - Pairava no ar esta inquietação.
- Agora vamo-nos manter unidos e organizados, não devemos esquecer-nos que temos um navio perto que mais tarde ou mais cedo nos vai recolher, pior seria se não tivessemos ninguém.
Desta forma sosseguei os mais receosos e acalmei os ânimos dos mais exaltados e destemidos pondo ordem no grupo, evitando o pânico, factor importante para o êxito de qualquer operação de salvamento.
Uma das técnicas de ocupação do espaço do habitáculo da jangada era sentarmo-nos de costas para o mar e os pés para o centro da jangada, duma forma radial. Teóricamente e com calmaria penso que seria a solução adequada, mas não naquelas condições adversas de mar cavado e desencontrado obrigando a jangada a mover-se erráticamente, sem controlo, ora subindo até à crista ora descendo até à cava da onda, qual casca de noz que se atira para a água e fica ao sabor da agitação.Dá a sensação que o estômago sai pela boca fora, o meio elástico de borracha que serve de fundo parece que não existe e que estamos constantemente a ser mexidos por baixo como que a ser apalpados pela água gelada. Um cheiro a azedo começa a invadir o reduzido habitáculo onde doze homens respiram, transpiram e vomitam ao mesmo tempo. Até os mais fortes de estômago não resistem ao vómito.
O 3.º motorista e o Contramestre
Ao redor o escuro é a cor dominante, nem uma luz no mar ou no ar, parece que estamos no fundo de um poço onde nada se vislumbra, nem mesmo um buraco de céu. Alguns, cansados e enojados dos vómitos adormeceram embalados pelo incerto movimento do fundo elástico da jangada, enquanto outros prescrutam o horizonte na esperança de verem ou ouvirem alguma luz ou som que se aproxime e venha em nosso socorro.
- Sr. Imediato, Sr. Imediato! - gritava um dos que com a cabeça de fora estava de vigia.
- Parece que ouço um motor nesta direcção! - e apontava com o braço esticado a direcção donde ouvia o barulho.
- Schiu! Schiu! - mandei calar o pessoal que entretanto acordara sobressaltado com o grito do vigia querendo abeirar-se da janela para também escutar.
Coloquei a cabeça fora da janela e escutei atentamente, mas só ouvia o rugir do mar. Estava na cava da onda, no buraco,mais uns segundos até subir à crista e muito longe ouvi um barulho que ora se ouvia ora deixava de se ouvir. Não estavamos sós, concentrei o ouvido e não havia dúvida era o motor duma embarcação, pensei tratar-se da lancha de aliviar os botes do navio Novos Mares, só podia ser ela.
Lancei um Verylight (espécie de foguete de sinalização) na direcção do ruído, esperançado que fosse visto, apesar do espesso manto de névoa que nos envolvia.
- Apitem! Apitem com quanta força tiverem! -gritei e, ainda não tinha acabado, já um barulho estridente saído dos onze apitos dos homens se fazia ouvir, amontoados junto às duas janelas da jangada.
- Párem, párem de apitar! - gritei e fui-me colocar com a cabeça de fora junto a uma das janelas. O barulho era agora mais nítido, menos entrecortado, dava a sensação que se dirigia na nossa direccção. Voltei a insistir que apitassem com força e tentassem manter a jangada com uma das janelas "aproada", para o lado de onde vinha o ruído, com a ajuda dos pequenos remos.
Aparecia e desaparecia uma luz ténue e mortiça e o barulho era agora bem perceptível, não havia qualquer dúvida que se tratava de uma embarcação que vinha na nossa direcção. Pouco a pouco a embarcação aproximava-se com um projector varrendo o mar de um lado para o outro como que a procurar algo. O pessoal continuava a apitar e a fazer uma algazarra ensurdecedora. A lancha estava quase a alcançar-nos. Passou rente a nós e atirou-nos uma retenida(cabo fino com uma pinha num dos chicotes para mais fácilmente ser atirado a alguém) que um dos pescadores apanhou à primeira.
Alem a retenida e prendam o cabo à jangada! - assim dizia o contramestre do Novos Mares que comandava a lancha e que passara um cabo ao outro chicote (extremo) para rebocar a jangada até ao Novos Mares.
Preparando os botes
- Já está passado, senhor Capitão! -ouvi o contramestre transmitir para o Novos Mares.
- Governa a Norte quarta de Noroeste ! - ordenava o capitão do bacalhoeiro Novos Mares. Estavamos prestes a ser salvos, mas outras aventuras ainda havia que vencer, a viagem a reboque da lancha e o embarque para o navio com condições de mar adversas.
Não foi fácil vencer essa pequena distância que nos separava do navio salvador, cerca de uma milha, como viemos a saber mais tarde. Os esticões originados pela diferença do comprimento do cabo/comprimento de onda, agravado pela amplitude da ondulação, pareciam que iam romper com a pega de amarração da jangada e, mais grave seria, se provocassem um rombo na câmara de ar que a fazia flutuar. Este cenário foi dos mais trágicos que vivemos, pela grande probabilidade de vir a acontecer. Naquelas condições adversas o mestre da lancha não podia fazer melhor, porque era difícil, senão impossível, avaliar as condições de ondulação, prevenindo ou atenuando os esticões, reduzindo ou dando máquina consoante a situação. Por outro lado a visibilidade era nula e o barulho do motor abafava qualquer voz que tentasse fazer chegar a bordo da lancha.
Os da jangada bem gritavam alto: - Devagar mestre, devagar que vai partir tudo! - mas em vão porque os da lancha não conseguiam ouvir nada. A bordo da jangada o ambiente estava num caos, o pânico, até aí contido, apoderava-se dos homens que , impotentes e descontrolados pelos solavancos que os faziam cair uns sobre os outros, blasfemavam e irados esmurravam-se uns aos outros, sem saber o que faziam e a quem batiam.
O caos estava instalado. Por mais que eu gritasse tentando impor a ordem, ninguém me ouvia e muito menos obedecia. Um clarão pálido, duma luz difusa escoada por entre os milhões de gotículas de água do nevoeiro e da surriada, estava na nossa frente, era o nosso salvador. Foi sem dúvida o motivo apaziguador daquela balbúrdia infernal que se tinha instalado a bordo da jangada e que ninguém conseguia controlar e sossegar.
Um a um foram saltando para a escada de quebra-costas instalada a meia-nau, por vante da ponte, com o navio fazendo socairo(abrigo) para permitir o embarque das pessoas em segurança. Apesar disso, por vezes, o contramestre que manobrava a lancha, não conseguia evitar que esta batesse com força contra o costado do navio, estremecendo e estalando numa convulsão que parecia que estava a partir-se. Foram momentos de nervosismo e ansiedade indescritíveis que cada um viveu a seu modo.
Partindo para a faina
Fui o último a embarcar. As condições de embarque tinham piorado entretanto com o navio a atravessar-se à vaga, a lancha não conseguia aproximar-se com o balanço transversal do navio, por motivo do rolo de mar. A escada de quebra-costas balouçava ora afastando-se do costado ora embatendo fortemente contra ele. Era assustador este cenário numa noite fria e nevoenta com mar de vaga cavada, pouca luz e uma escada de corda balouçando. Era preciso ser acrobata para abordar esta aventura e eu não o era. Por momentos pensei em desistir mas, uma força interior, que se consegue encontrar nos momentos difíceis e quando tudo já está perdido apossou-se de mim uma adrenalina que me impeliu para a escada no momento em que se aproximava da lancha conseguindo agarrá-la com a mão esquerda no chicote e ainda em balanço segurar-me com a direita ao outro lado da escada. O estrondo contra o costado do navio foi enorme e quase me obrigava a largar a escada mas, um força estranha e sobrehumana, ajudou-me a vencer esta adversidade e consegui colocar um pé no último degrau da escada. Naquele instante agradeci a Deus ter-me dado forças, agilidade, instinto, eu sei lá o que me ajudou a vencer a queda quase certa na água gelada e ficar imobilizado por hipotermia e perdido para sempre na noite de bréu naquele oceano agreste.
Quando me vi no convés do Novos Mares nem queria acreditar. Chorei de alegria, de comoção por estar salvo. Levaram-me para a ponte onde se encontrava o Capitão do São Jorge que se abraçou a mim num comovente abraço de felicidade e me disse: - Graças a Deus estamos todos salvos. O pesadelo acabou, só faltava você.
O nosso salvador rumou a St. John's onde chegou pela manhã para descarregar os náufragos.