Porto Comercial - o Akhmeta é o 2.º a contar da esquerda
Nos anos oitenta os Estaleiros Navais de Viana do Castelo, mercê de um bom relacionamento comercial com a antiga URSS, receberam um grande número de navios de pesca, para reparação.
Como todos os arrastões, os soviéticos eram navios de grande calado o que implicava não poderem demandar directamente os cais envolventes à zona dos Estaleiros e terem que atracar no Porto Comercial, recentemente inaugurado(o novo Porto Comercial foi inaugurado em 21 de Abril de 1984 pelo navio "BALDUR" que veio carregar bobines de papel Kraft da Portucel), aguardando maré e aliviando carga para o cais - portas de arrasto, redes de pesca e outro material.
O Akhmeta foi um dos arrastões que teve de ir atracar no Porto Comercial por motivo do elevado calado( parte do navio abaixo da linha d'água) a ré( lado da pôpa).
Na minha vida de piloto da barra de Viana do Castelo tenho muitas histórias, umas mais outras menos interessantes. Relacionado com o Akhmeta vivi uma situação que me marcou em toda a minha vida de piloto da barra.
Embarquei na área de pilotagem mais ou menos a duas milhas( a milha maritima é cerca de 1852 metros) por volta das oito horas da manhã. Chegado à ponte de comando do navio e após os habituais cumprimentos, a primeira coisa que o capitão fez foi indicar-me por gestos uma pequena mesa situada na asa de bombordo da ponte recheada de tapas diversas, biscoitos, bolos, sanduiches, copos e garrafas de bebida entre as quais a tradicional Vodka russa.
Um parentesis para realçar que a maioria dos capitães dos arrastões de pesca da antiga URSS não falavam inglês ou outra língua ocidental intelegível, sendo dificil as comunicações entre nós. Atendendo a essa dificuldade de entendimento preocupante, vi-me forçado a aprender, especialmente os termos náuticos básicos, as ordens para o leme e máquina e mesmo alguns termos mais comuns e que ainda recordo alguns passados tantos anos, afim de evitar males maiores e de consequências imprevisíveis.
Fiz que não entendi a chamada de atenção gestual e procurei comunicar acerca da manobra do navio como é habitual, perante uma certa incredulidade dos tripulantes presentes que me olhavam estupefactos enquanto o capitão, rigorosamente fardado, me pegava no braço e me arrastava para a mesa, acenando-me para comer e enchendo um copo de tamanho médio de vodka. Em vão tentei dizer-lhe que não me apetecia comer e muito menos beber. O oficial Imediato que "arranhava" algumas palavras em inglês, fez-me perceber através das poucas palavras que sabia que o capitão levava a mal se eu não comesse e bebesse. Consegui protelar o manjar para o fim da manobra, na esperança que entretanto ele se esquecesse.
Era a primeira vez que manobrava aquele tipo de navio com cerca de 102 metros de comprimento e não podia obter informações acerca das capacidades e atributos de manobra do navio. Durante o percurso efectuei alguns testes simples que me permitiram ter uma noção suficiente para poder manobrar com segurança, pois tinha de contar com a falta de comunicação, só me podia fazer entender por gestos, indicando ao oficial encarregue de executar as manobras da máquina a potência que pretendia e o mesmo sucedendo com as ordens para o leme, fazendo eu próprio essa missão.
Atraquei o navio no sector previamente determinado e enquanto aguardava que o imediato preenchesse o boletim de entrada o capitão voltou à carga, insistindo para comer e beber. Era impossível esquivar-me, ao mesmo tempo que enchia mais um copo de vodka para ele e me colocava forçadamente na mão outro copo, nasdtrovia ???, (eu sabia lá o que significava) nasdtrovia???,(tchim-tchim) repetia ele, acenando para que bebesse e dum gole emborcou (engoliu), o conteúdo do copo enquanto eu o tentava imitar fazendo o gesto, mas evitando beber até final.
Nunca fui apreciador de bebidas brancas, muito menos vodka e para mais no estado puro. Por outro lado em serviço nunca bebo, foi uma regra que impus a mim próprio e que copiei dum piloto da barra norueguês em Tromsö, quando uma vez aportei aquele porto no arrastão de pesca português João Martins aí por volta de 1979.
Voltando ao persistente capitão Kishnjakia, assim se chamava, agarrou-me na mão e quase me me forçava a engolir o resto do vodka que deixei no copo, da primeira tentativa frustada. Fiz-lhe um sinal com a mão insinuando calma e devagar e pausadamente aos goles, lá fui bebendo o amargo líquido, enquanto ele ia fazendo mais saudações esvaziando de um trago a super alcoólica bebida.
Despedi-me sem delongas e desci atabalhoadamente as escadas do navio em direcção à escada de quebra-costas (assim se chama a escada de piloto), posicionada ao costado do lado de bombordo (lado esquerdo do navio).
Finalmente estava a salvo a bordo da lancha de pilotos e inebriado estatelei-me no sofá da casa do leme enquanto o mestre e o marinheiro, incrédulos, perguntavam o que me tinha acontecido. Entre dentes expliquei o que me sucedera. Tinha a sensação que estava a arder por dentro e um cansaço inebriante apoderava-se de mim, estava tonto e enjoado, apetecia-me vomitar. Assomei à porta da lancha e tentei deitar a carga ao mar, como se diz na gíria marítima. À segunda tentativa consegui e fiquei mais aliviado, parece que me tinha saído um novelo de fogo do estômago.Fui ao Beira-Mar (café junto à doca comercial que costumavamos frequentar)tomar um chá e fiquei melhor embora durante o resto do dia andasse estranho física e psíquicamente. Felizmente que não houve nesse dia outras manobras de entrada/saída ou mudança.
O navio Akhmeta permaneceu em Viana do Castelo cerca de um mês em reparação e efectuei várias manobras de mudança e de saída, mas avisei o agente do navio (intermediário que no porto representa o navio perante as autoridades) para instruir o capitão a não insistir nas saudações báquicas antes, durante ou após as manobras. Daí em diante o capitão seguiu à risca essas sugestões e o imediato tornou-se um colaborador excelente e um entusiasta na aprendizagem de termos técnicos náuticos em inglês e eu, fiquei motivado a aprender termos técnicos em russo e foi assim que comecei a interessar-me pela língua russa e até comprei um livro para aprender russo.
As reparações aos navios de pesca da URSS terminaram e os contactos com a língua russa limitaram-se aos navios em construção nos Estaleiros, mais raras e por vezes não aceites, e bem, pelos capitães e oficiais desses navios que, oriundos doutra escola falavam melhor inglês.
Foi graças ao Akhmeta ter estado em Viana do Castelo em reparação e à história que acabo de narrar que hoje sei pronunciar algumas palavras em russo. Valeu a pena ter apanhado um "pifo"