O KAPRELA, era um arrastão de pesca Búlgaro que teve um incêndio a bordo quando se encontrava na faina da pesca. Os Estaleiros Navais de Viana do Castelo enviaram peritos para elaborar um orçamento de reparação e ganharam o concurso tendo o navio vindo para Viana do Castelo rebocado por um outro navio de apoio à frota, um navio-fábrica-mãe, como eram vulgarmente chamados este tipo de navios.
As frotas Soviéticas e Búlgaras tinham estes navios de apoio que não só abasteciam de combustível, como também forneciam provisões, mantimentos,mudanças de tripulações, prestavam apoio hospitalar e ao mesmo tempo recebiam pescado dos navios que processavam e transformavam a bordo, daí o serem apelidados de navios mãe porque forneciam as coisas necessárias aos navios (filhos) e também operavam o peixe a bordo preparando-o para o mercado tal como numa fábrica (conservas, filetes).
Estas frotas que operavam em mares distantes do porto de armamento, possuiam também outros navios de apoio, como navios-doca, utilizados para reparar os arrastões no alto-mar, evitando a deslocação a um porto estrangeiro (na maioria dos casos por impedimento de relações diplomáticas) e também como medida económica.
No caso do Kaprela, após o incêndio ocorrido e depois de tomada a decisão da reparação em Viana do Castelo, foi utilizado como rebocador um desses navios-fábrica-mãe de que não me ocorre o nome. A forma de rebocar utilizada foi de braço-dado, isto é, em vez de estabelecer um cabo de aço pela popa, como normalmente é efectuado um reboque em alto-mar, os Búlgaros e Soviéticos, utilizavam muito este sistema, em parte devido à potência do navio que reboca ser grande e também por possuirem boas defensas que normalmente utilizam na atracação dos arrastões durante as operações de transbordo.
Os dois navios encontravam-se a pairar em frente a Viana do Castelo a cerca de duas milhas (3,5 Km). A lancha de Pilotos aproximou-se do costado do navio pelo lado de estibordo, onde se encontrava montada a escada de quebra-costas de acesso ao navio. O embarque foi moroso e difícil devido ao vento e mar de Noroeste e ao mau posicionamento dos navios relativamente ao mar, não permitindo um abrigo adequado por forma a possibilitar o embarque do piloto em segurança. Por outro lado, a dificuldade de comunicações com os Búlgaros,(devido à fala) tornava mais difícil um entendimento capaz de posicionar o navio adequadamente (era frequente este cenário entre os navios de pesca oriundos dos países de Leste).
Embarquei com o Bastião (piloto estagiário nessa data). Quando chegamos à ponte de comando após um percurso acidentado e fantasmagórico pelo interior do navio às escuras, suspiramos de alívio. O vento assobiava por entre as janelas da ponte, abertas e partidas em resultado do intenso calor provocado pelo fogo. As chapas retorcidas e oxidadas em tons avermelhados apresentavam formas algo estranhas.
A operação de desamarrar o Kaprela do navio-fábrica-mãe foi demorada e complicada. Os navios estavam bem amarrados e separados por grandes defensas de borracha do tipo Yokohama para não roçarem um no outro. O tempo escoava-se rápidamente e perdeu-se a maré para entrar com o navio para os Estaleiros Navais de Viana do Castelo. Por fim, após três longas horas de trabalho àrduo e arriscado, o Capitão do navio rebocador deu por terminada a operação num tom de alívio.
O pior estava para vir, é que mais uma vez devido às dificuldades de entendimento linguístico, fui informado pelo mestre do rebocador da prôa , "Monte Crasto", que não tinha sido ainda estabelecido o cabo de reboque. O navio estava solto, à deriva, sem qualquer força de tracção a sustê-lo do impacto do vento forte que se fazia sentir do quadrante Norte e que nos entontecia a cabeça com o sibilar intenso, coado por entre as frinchas das janelas desprotegidas de vidraças da ponte de comando.O vento arrancava das chapas queimadas o òxido de ferro que penetrava nas nossas narinas e nos olhos, inebriando-nos dum cheiro a queimado que entontecia as nossas cabeças.
Por fim o mestre do "Monte Crasto" anunciava pelo V.H.F. (aparelho de comuniação em Very High Frequency - Muito Alta Frequência) utilizado nas manobras, para comunicação entre os intervenientes:
- Está estabelecido sr. piloto!
- Ok, mestre. Puxe na direcção do molhe !
- À popa também está passado, informava o mestre do rebocador "Vandoma", que tinha acabado de estabelecer o cabo de reboque à popa do navio "Kaprela".
Finalmente a caminho da entrada. Tinham-se passado quase cinco longas horas de espera e sofrimento, de angústia também e de algum pesadelo, pela impotência que em alguns momentos pairou no meu espírito.
O navio tinha perdido a maré para entrar na zona dos Estaleiros. A única solução que restava era entrar para a zona do Cais Comercial, com fundos suficientes para receber o navio. Mas o cais estava cheio de navios em operações de carga e descarga e também quatro arrastões atracados par a par. A única solução era atracar o navio às bóias de amarração posicionadas na parte Leste da bacia com o objectivo de amarrar navios de longa permanência a aguardar trabalhos de reparação.
A manobra de amarrar às bóias é uma manobra bastante demorada e que implica largar os dois ferros (âncoras). Na minha cabeça, massacrada de tanto vento e toldada pela poeira, idealizava a melhor forma de comunicar com os marinheiros Búlgaros, para lhe transmitir as ordens a executar para o sucesso da manobra e no menor tempo possível, dentro das limitações de comunicação existentes.
Tinham-se passado oito horas desde o embarque, finalmente o Kaprela estava amarrado em segurança.
Desci a escada de piloto, mais morto que vivo, como se costuma dizer, e a lancha afastou-se do navio, cuja silhueta recortada na paisagem nocturna da cidade, sem luzes, mais parecia a silhueta dum fantasma.
Obs: O Kaprela , entrou no dia 10 de Abril de 1986, esteve em reparação quinze meses. "deu àgua pela barba", aos técnicos dos ENVC e também um grande prejuízo e por fim saiu em 13 de Junho de 1987.