São Tomé
No regresso à Metrópole, passamos pelo arquipélago de S. Tomé e Príncipe para carregar copra com destino a Lisboa. Foi de todas as terras que conheci ao longo da minha vida de mar a mais encantadora e paradisíaca. Em S. Tomé, onde, como no Príncipe, não havia cais de atracação, fui a terra no barco da agência para uma visita à roça Vale Flor a convite do agente que proporcionava aos continentais este "mimo" fora do vulgar.
É duma beleza inenarrável a floresta equatorial santomense, deixa-nos boquiabertos e mudos de emoção perante cenário tão deslumbrante e natural. A chuva que nos apanha desprevenidos é benéfica e refrescante, o cajú que nos delicia é dum gosto sublime, a beleza dos coqueiros que nos presenteiam com o delicioso suco do "leite de côco ", parece que estamos num paraíso autêntico.
Foi curta a estadia em S. Tomé, a carga era pouca e partimos para o Príncipe onde também iríamos ter uma curta estadia. Como costume o "Trancas" (praticante) é o moço de recados para as tarefas mais ligeiras e corriqueiras . Coube-me a missão de ir a terra com o agente tratar de assuntos diversos na Delegação Marítima de Santo António do Príncipe. A vila resume-se a uma rua marginal com poucas casas mas a beleza natural que envolve a pequena povoação suplanta qualquer urbanismo por mais atractivo que seja. As galinhas do mato passeando espontaneamente sem medo dos humanos impressionou-me a tal ponto que a convite do agente não resisti a tentar apanhar uma.
Levantamos ferro e contornamos a ilha pelo norte em direcção à Ilha de Santiago em Cabo Verde onde nos esperava um longa estadia para descarregar milho. A vista da ilha do Príncipe do lado oriental com o grande morro cinzento no centro rodeado duma floresta equatorial verdejante, sobrevoada por um anel de nuvens é duma beleza inigualável. Ficou-me na retina para sempre esta visão deslumbrante e etérea.
São Tiago
Começou-se a sentir a brisa fresca do norte acompanhada dum balanço longitudinal, depois de um calor húmido e insuportável que parecia colar-se ao corpo na monotonia das calmas equatoriais, era sinal de que havíamos passado a zona da Guiné e rumávamos a Cabo Verde.
A cidade da Praia na ilha de São Tiago, é a capital do arquipélago. Naquela época ainda não tinha cais de atracação para os navios de maior porte, apenas um pequeno trapicho para pequenas embarcações de pesca e cabotagem, por isso ficamos fundeados ao largo, o mais próximo possível do trapicho para permitir um trajecto mais curto às pequenas embarcações locais que iriam fazer o transbordo do milho para terra.
Ainda o navio não tinha unhado ( quando uma das unhas do ferro se enterra no fundo), já uma frota de pequenas embarcações rodeava o navio tentando atracar. O agente chegou numa dessas embarcações e subiu lesto a escada de portaló onde o recebi e encaminhei para o camarote do comandante. O contramestre com os marinheiros já havia preparado os paus de carga para não haver perda de tempo. O encarregado da estiva apresentou-se com a sua equipa de grueiros prontos a iniciar a descarga dos inúmeros sacos de milho estivados nas cobertas dos porões nº 3 e 4, provenientes de Moçâmedes.
A destreza e perícia dos pescadores Cabo-verdianos das pequenas maceiras ( pequena embarcação de fundo chato, de forma rectangular, sem proa nem popa) atracando e desatracando do navio num vaivém contínuo, levou-me a concluir que a estadia iria ser mais curta que antevira quando, sabendo da quantidade de sacaria a descarregar, me disseram que na Praia a descarga era feita por barcos de pescadores que no máximo podiam levar 4 sacos de cada vez.
A pouca profundidade em que estávamos ancorados e a limpidez das águas baía permitiam ver o fundo do mar. Este facto era aproveitado pelo pessoal de bordo para por à prova as qualidades de mergulho dos naturais que, enquanto esperavam pela vez, aumentavam o seu pecúlio, mergulhando para caçar as moedas que eram atiradas de bordo, quais golfinhos em busca de plâncton. Era um espectáculo para o pessoal de bordo que assim se divertia à custa do risco e sacrifício dos pobres mas exímios nadadores/mergulhadores cabo-verdianos e assim passavam o tempo.
Mindelo
O milho a granel embarcado em Moçâmedes destinava-se a São Vicente, porque tinha cais acostáveis possibilitando a descarga directa para vagões no cais, evitando assim o ensacamento na origem e tornando o produto final mais barato naturalmente.
No retorno na costa de Angola embarcamos em Luanda os artefactos duma companhia de circo que andou em digressão por Angola. Se não me falha a memória, tratava-se da companhia de circo do famoso palhaço Quinito . Entre o diverso material embarcado encontravam-se várias jaulas com vários tigres, ao certo não me recordo. Para tratar dos felídeos embarcou o tratador, um belga robusto e ágil, como convém à arte de lidar com tão astutos e ferozes animais.
Um dia à noite, o belga, depois de tratados os tigres e terminados os afazeres resolveu ir a terra beber umas cervejas e divertir-se. A diversão ia-lhe custando a vida, se não fosse a ligeireza e astúcia que a profissão o obrigara a adestrar. Quando saía o portão do porto do Mindelo foi acossado por vários indivíduos, pelo menos três, segundo dizia e se comprovou mais tarde, que o pretendiam roubar. Os três foram parar ao hospital com ferimentos, um deles em estado que inspirava cuidados, enquanto outros fugiram perante a destreza com que o belga se defendeu dos atacantes e contra atacou ferindo-os, sofrendo apenas ligeiros ferimentos na mão esquerda e no braço direito que foram solucionados pelo enfermeiro de bordo.
Segundo dizia o tratador, os atacantes estavam munidos de facas e ele também se defendeu com facas que usava presas nas canelas das pernas, por baixo das calças. Este facto foi motivo de comentário, o que teria acontecido se o ataque perpetrado e consumado tivesse sido a um qualquer de nós?
Normalmente, em portos duvidosos, os marítimos formam grupos para se protegerem, e Mindelo é um desses portos que está na lista de portos a ter cautela, por isso, o pessoal que foi para terra nessa noite, fê-lo em grupos, não permitindo a ousadia aos meliantes de atacarem.
O tratador belga, que já tinha sido avisado, (ainda se riu do aviso e mostrou as facas na liga) quando foi avistado sozinho, foi julgado presa fácil e a abater, mas quem ficou abatido foram os atrevidos ladrões.
Nem por isso deixamos de ir a terra nas noites seguintes, o ambiente nocturno no Mindelo é convidativo para quem vive no mar. Entre muitas atracções, jamais esquecerei uma de carácter gastronómico que apreciei e ainda hoje dou muito valor a ponto de por vezes apanhar alguns sustos e muito chiparraço(surriada de mar) na apanha dos saborosos e apetitosos percebes.
Foi pela mão do Orlando(2º piloto) que conheci este bivalve . Enquanto estivemos no Mindelo, não houve dia que não fossemos saborear os tutanos dos carnudos percebes de Cabo Verde, acompanhados dumas boas e refrescantes imperiais. Ainda não encontrei tão gordos e saborosos como aqueles, já lá vão 37 anos.
cbnnm