Blog que retrata os acontecimentos do mar e porto de Viana e arredores, nos bons e maus momentos, dos pequenos aos grandes senhores.

29
Jul 07

São Tomé

 

No regresso à Metrópole, passamos pelo arquipélago de S. Tomé e Príncipe para carregar copra com destino a Lisboa. Foi de todas as terras que conheci ao longo da minha vida de mar a mais encantadora e paradisíaca. Em S. Tomé, onde, como no Príncipe, não havia cais de atracação, fui a terra no barco da agência para uma visita  à roça Vale Flor a convite do agente que proporcionava aos continentais este "mimo" fora do vulgar.

É duma beleza inenarrável a floresta equatorial santomense, deixa-nos boquiabertos e mudos de emoção perante cenário tão deslumbrante e natural. A chuva que nos apanha desprevenidos é benéfica e refrescante, o cajú que nos delicia é dum gosto sublime, a beleza dos coqueiros que nos presenteiam com o delicioso suco do "leite de côco ", parece que estamos num paraíso autêntico.

 

 

Foi curta a estadia em S. Tomé, a carga era pouca e partimos para o Príncipe onde também iríamos ter uma curta estadia. Como costume o "Trancas" (praticante) é o moço de recados para as tarefas mais ligeiras e corriqueiras . Coube-me a missão de ir a terra com o agente tratar de assuntos diversos na Delegação Marítima de Santo António do Príncipe. A vila resume-se a uma rua marginal com poucas casas mas a beleza natural que envolve a pequena povoação suplanta qualquer urbanismo por mais atractivo que seja. As galinhas do mato passeando espontaneamente sem medo dos humanos impressionou-me a tal ponto que a convite do agente não resisti a tentar apanhar uma.

 

 

Levantamos ferro e contornamos a ilha pelo norte em direcção à Ilha de Santiago em Cabo Verde onde nos esperava um longa estadia para descarregar milho. A vista da ilha do Príncipe do lado oriental com o grande morro cinzento no centro rodeado duma floresta equatorial verdejante, sobrevoada por um anel de nuvens é duma beleza inigualável. Ficou-me na retina para sempre esta visão deslumbrante e etérea.

 

São Tiago

 

Começou-se a sentir a brisa fresca do norte acompanhada dum balanço longitudinal, depois de um calor húmido e insuportável que parecia colar-se ao corpo na monotonia das calmas equatoriais, era sinal de que havíamos passado a zona da Guiné e rumávamos a Cabo Verde.

A cidade da Praia na ilha de São Tiago, é a capital do arquipélago. Naquela época ainda não tinha cais de atracação para os navios de maior porte, apenas um pequeno trapicho para pequenas embarcações de pesca e cabotagem, por isso ficamos fundeados ao largo, o mais próximo possível do trapicho para permitir um trajecto mais curto às pequenas embarcações locais que iriam fazer o transbordo do milho para terra.

 

 

Ainda o navio não tinha unhado ( quando uma das unhas do ferro se enterra no fundo), já uma frota de pequenas embarcações rodeava o navio tentando atracar. O agente chegou numa dessas embarcações e subiu lesto a escada de portaló onde o recebi e encaminhei para o camarote do comandante. O contramestre com os marinheiros já havia preparado os paus de carga para não haver perda de tempo. O encarregado da estiva apresentou-se com a sua equipa de grueiros prontos a iniciar a descarga dos inúmeros sacos de milho estivados nas cobertas dos porões nº 3 e 4, provenientes de Moçâmedes.

A destreza e perícia dos pescadores  Cabo-verdianos   das pequenas maceiras ( pequena embarcação de fundo chato, de forma rectangular, sem proa nem popa) atracando e desatracando do navio num vaivém contínuo, levou-me a concluir que a estadia iria ser mais curta que antevira quando, sabendo da quantidade de sacaria a descarregar, me disseram que na Praia a descarga era feita por barcos de pescadores que no máximo podiam levar 4 sacos de cada vez.

A pouca profundidade em que estávamos ancorados e a  limpidez das águas baía permitiam ver o fundo do mar. Este facto era aproveitado pelo pessoal de bordo para por à prova as qualidades de mergulho dos naturais que, enquanto esperavam pela vez, aumentavam o seu pecúlio, mergulhando para caçar as moedas que eram atiradas de bordo, quais golfinhos em busca de plâncton. Era um espectáculo para o pessoal de bordo que assim se divertia à custa do risco e sacrifício dos pobres mas exímios nadadores/mergulhadores cabo-verdianos e assim passavam o tempo.

 

Mindelo

 

O milho a granel embarcado em Moçâmedes destinava-se a São Vicente, porque tinha cais acostáveis possibilitando a descarga directa para vagões no cais, evitando assim o ensacamento na origem e tornando o produto final mais barato naturalmente.

No retorno na costa de Angola embarcamos em Luanda os artefactos duma companhia de circo que andou em digressão por Angola. Se não me falha a memória, tratava-se da companhia de circo do famoso palhaço Quinito . Entre o diverso material embarcado encontravam-se várias jaulas com vários tigres, ao certo não me recordo. Para tratar dos felídeos embarcou o tratador, um belga robusto e ágil, como convém à arte de lidar com tão astutos e ferozes animais. 

 

 

Um dia à noite, o belga, depois de tratados os tigres e  terminados os afazeres resolveu ir a terra beber umas cervejas e divertir-se. A diversão ia-lhe custando a vida, se não fosse a ligeireza e astúcia que a profissão o obrigara a adestrar. Quando saía o portão do porto do Mindelo foi acossado por vários indivíduos, pelo menos três, segundo dizia e se comprovou mais tarde, que o pretendiam roubar. Os três foram parar ao hospital com ferimentos, um deles em estado que inspirava cuidados, enquanto outros fugiram perante a destreza com que o belga se defendeu dos atacantes e contra atacou ferindo-os, sofrendo apenas ligeiros ferimentos na mão esquerda e no braço direito que foram solucionados pelo enfermeiro de bordo.

Segundo dizia o tratador, os atacantes estavam munidos de facas e ele também se defendeu com facas que usava presas nas canelas das pernas, por baixo das calças. Este facto foi motivo de comentário, o que teria acontecido se o ataque perpetrado e consumado tivesse sido a um qualquer de nós?

Normalmente, em portos duvidosos, os marítimos formam grupos para se protegerem, e Mindelo é um desses portos que está na lista de portos a ter cautela, por isso, o pessoal que foi para terra nessa noite, fê-lo em grupos, não permitindo a ousadia aos meliantes de atacarem.

O tratador belga, que já tinha sido avisado, (ainda se riu do aviso e mostrou as facas na liga) quando foi avistado sozinho, foi julgado presa  fácil e a abater, mas quem ficou abatido foram os  atrevidos ladrões.

 

 

Nem por isso deixamos de ir a terra nas noites seguintes, o ambiente nocturno no Mindelo é convidativo para quem vive no mar. Entre muitas atracções, jamais esquecerei uma de carácter gastronómico que apreciei e ainda hoje dou muito valor a ponto de por vezes apanhar alguns sustos e muito chiparraço(surriada de mar) na apanha dos saborosos e apetitosos percebes.

 

Foi pela mão do Orlando(2º piloto) que conheci este bivalve . Enquanto estivemos no Mindelo, não houve dia que não fossemos saborear os tutanos dos carnudos percebes de Cabo Verde, acompanhados dumas boas e refrescantes imperiais. Ainda não encontrei tão gordos e saborosos como aqueles, já lá vão 37 anos.

 

cbnnm

 

 

 

publicado por dolphin às 18:38

03
Jul 07

A costa de Angola

 

Estava ansioso por conhecer Luanda. Não só pela beleza natural de que goza fama como também porque já tinham passado muitos dias desde que deixamos o Funchal e, para um marinheiro de primeira viagem, começava a tornar-se cansativa a vida a bordo. Precisava esticar as pernas, ver gente...

Quando por volta do meio dia o criado me veio chamar para almoçar, já eu estava a pé no tombadilho das baleeiras por ré do meu camarote que ficava ao lado do telegrafista junto à TSF. Preferi este camarote, embora me fosse dado à escolha o do 3º piloto que ficava por baixo da chaminé do navio, mas o Orlando avisou-me que era muito quente e como vínhamos para África era boa escolha o do praticante que dava para o tombadilho das baleeiras.

O navio navegava sereno junto à costa Angolana depois de passarmos o Ambriz , rumo a Luanda onde devíamos chegar a meio da tarde.

 

 

Vista do mar a ilha do Mussulo , com as palmeiras e coqueiros verdes por sobre a areia branca da praia contrastando com o ocre da falésia por cima, parecia um cenário de miragem de oásis ameno e acolhedor ao fim duma extenuante caminhada pelo deserto. Daí a pouco entravamos na baía de Luanda, com a cidade por bombordo e a ilha do Mussulo por estibordo.

Estava finalmente na bela Luanda com a extensa marginal ornada de coqueiros, reflectindo nas águas calmas da baia o casario baixo, entrecortado de arvoredo, destacando-se o "mamarracho" do edifício do BCA .

 

 

 

Foi uma estadia memorável que passei nesta bela e acolhedora cidade e na aprazível e encantadora ilha do Mussulo , mas cedo acabou a boa vida, tínhamos de continuar a viagem ao longo da costa angolana.  

Depois de Luanda seguiam-se os portos de Porto Amboim e Novo Redondo, sem cais de atracação onde descarregávamos para batelões alguma carga e começávamos a carregar café para a Metrópole.

Num dia de folga, aproveitei uma ida a terra em Porto Amboim levar umas cartas ao correio local para na volta ir à praia tomar um banho nas maravilhosas águas  equatoriais dentro da área protegida dos tubarões que frequentemente visitam a praia deixando por vezes a sua marca mortífera.

Lobito foi o porto seguinte. Tem uma configuração geográfica muito semelhante a Luanda, com a Restinga a substituir a ilha do Mussulo , embora o porto e a cidade se situem no lado oposto a Luanda mas que em nada a desmerece em beleza. É um local inesquecível na minha rota marítima, porque foi lá que festejei os meus 22 anos com um sabor tropical inimaginável.

 

 

Moçâmedes - Praia da miragens

 

A princesa do Namibe - a bela Moçâmedes - era o porto seguinte onde iríamos descarregar o resto da carga oriunda da Metrópole. Esperava-nos uma estadia prolongada porque estava previsto o embarque dum grande carregamento de milho ensacado e a granel  para Cabo Verde.

Aqui passei o Natal. O primeiro fora da família, do lar, do ambiente tradicional, num clima quente ao contrário do habitual em ambiente frio ao calor da lareira. Não soube a Natal. A nostalgia invadiu-me e senti a falta de tudo aquilo que fora habituado ao longo dos anos; do aconchego do lar e da família, das rabanadas e outras iguarias típicas desta época natalícia, , do frio e da neve.

Nesta primeira estadia em Moçâmedes não retenho boas recordações dignas de registo. Foi tudo muito desinsabido e desinteressante. Achei a cidade agreste e quente ao contrário daquilo que anos mais tarde vim a sentir. 

 

 

publicado por dolphin às 18:54
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01
Jul 07

Equador

À medida que nos aproximavamos do continente africano aumentava o calor, diminuía o vento e abonançava o mar.

O cheiro de Àfrica pairava no ar que respiravamos. Estavamos perto de terra. A rota tangente que o capitão traçara  em direcção ao cabo Verde estava prestes a aproximar-se do ponto de viragem de rumo.

O capitão viera à ponte ligar o radar na presença do imediato e do telegrafista. Era um ritual habitual nos navios mercantes nessa época. O radar estava fechado à chave e só o comandante tinha acesso, ou o telegrafista em caso de avaria. O radar era um auxiliar de navegação pouco em voga nos navios da Marinha de Comércio e só era utilizado nos pontos estratégicos de aproximação a terra, na dobragem de um cabo ou em zonas com corredores de tráfego, caso do Canal da Mancha, Gibraltar, etc.

Não fora o radar e não nos aperceberíamos da passagem do cabo Verde devido à distância considerável que o dobramos e à natureza da costa relativamente baixa. Por outro lado, a proximidade dele era evidente pela afluência significativa de navegação nos dois sentidos, sinal que estavamos a passar por uma zona congestionada de tráfego, sintoma evidente de um ponto de passagem habitual.

O mar tornou-se estanhado. Durante o quarto da noite, no silêncio, sómente o marujar do deslocamento do navio ecoava na imensidão do oceano acompanhado do ritmado barulho dos motores do navio, a que já nos habituamos ao fim de alguns dias de navegação e que a princípio não nos deixava dormir. 

Aproximavamo-nos do Equador, esse mítico e invisível paralelo de círculo máximo que todos os marítimos desejam passar apesar das praxes tradicionais impostas a quem o cruza pela primeira vez.

Para além de um banho de mangueira em sinal de baptismo, que soube bem pelo calor que se faz sentir nestas latitudes, sinceramente não me recordo do "castigo" que me foi imposto pelos ditames do Deus Neptuno. Recordo-me, isso sim, duma grande festa por ré do casario, sobre a escotilha do porão nº 4, com um toldo montado por causa do sol abrasador e mesas improvisadas pelo carpinteiro para toda a tripulação comer.

 

Cabinda

Sob um sol abrasador e inclemente navegamos para Cabinda, onde devíamos chegar pela manhã para começar a descarga.

Era por volta das duas horas da manhã quando no horizonte, pela proa do navio, avistei um clarão luminoso alaranjado que, à medida que nos íamos aproximando, se tornava mais brilhante dum amarelo alaranjado forte. Parecia que o mar estava a arder. Daí a pouco o mistério desvendou-se, começaram a surgir do mar labaredas de fogo expelidas das torres das plataformas petrolíferas. Estavamos a chegar à zona off-shore de extracção de petróleo de Cabinda.

Saí de quarto antes do navio "Ganda" fundear em frente ao porto de Cabinda, que nessa altura ainda não tinha cais de atracação para navios de grande calado. Apenas pequenos navios de cabotagem tinham acesso directo a um pequeno cais onde os batelões, utilizados no transporte da carga oriunda dos navios provenientes da Metrópole, atracavam.

O Ganda esteve alguns dias ancorado na baía de Cabinda à descarga de diversas mercadorias, entre elas vinho em barris, aguardente e calçado.

Não mais me esquecerei duma cena que presenciei a bordo de um batelão atracado no lado de estibordo do navio. Na primeira lingada de barris que foi despejada no batelão, um dos estivadores fez sinal ao homem do guincho para colocar um barril de 100 litros no convés do batelão à proa e, com uma espicha (varão de ferro afiado numa extremidade, usado para abrir ilhós e a cocha dos cabos) furou o tampo do pipo e, em pé, no porão do batelão, aparava com a boca o vinho que jorrava do buraco aberto pela espicha. Bebeu até se satisfazer da "água de Lisboa", (nome dado pelos nativos ao vinho) dando a vez aos outros que o imitaram na ingestão do tão precioso néctar. Não será necessário dizer o que aconteceu a seguir, pois todos sabemos o que acontece quando se exagera com este tipo de bebida.

 

 

 

publicado por dolphin às 19:19
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