Blog que retrata os acontecimentos do mar e porto de Viana e arredores, nos bons e maus momentos, dos pequenos aos grandes senhores.

27
Set 07

 

 


 

 

NOS MARES DA TERRA NOVA - A REBOQUE

 

 

 

 EM LISBOA - DE PARTIDA

 

 

VIANA - DOCA COMERCIAL - QUERENAGEM

publicado por dolphin às 01:11
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25
Set 07

Embora já tivesse estado em Moçâmedes por duas vezes, uma em 1969 e outra em 1970, não conhecia o Libório, figura bem conhecida de todos, especialmente do pessoal do mar.

O Libório é aquela pessoa simples e humilde que cativa e depressa se encaixa em qualquer ambiente, procurando ser prestável e pronto a colaborar. É amigo de verdade. Ao longo da minha vida de mar contam-se pelos dedos duma mão os amigos verdadeiros que conheci e em quem pude confiar, o Libório está nesse punhado de gente boa e amiga.

 

 

Moçâmedes vista do Porto Comercial

 

Quando cheguei a Moçâmedes pela terceira vez, aí por meados de Junho de 1971,como oficial-imediato do Arrastão de pesca "Tropical", da Sociedade de Pesca Miradouro, S.A., depois de atracarmos, o amigo Libório veio apresentar-se como mestre da lancha dos pilotos da barra, pondo-se à disposição para colaborar naquilo que estivesse ao seu alcance.

Como curiosidade, depois de se auto elogiar, defeito de somenos importância, comparado com as qualidades altruístas que possuía, apresentou uma cedula marítima passada pelo consulado do Panamá em Luanda, como Capitão da Marinha Mercante daquele país da América Central.

Durante os quase três anos que passei nos mares da zona do Sudoeste Africano, com vindas periódicas a Moçâmedes, normalmente de quinze em quinze dias, para descarga e abastecimento, à chegada tinha sempre o amigo Libório que como mestre da lancha dos pilotos, vinha  trazer o piloto a bordo e passar cabos a terra. 

Nem sempre  o amigo Rente, piloto da barra, vinha fazer a manobra de atracar/desatracar, autorizando-nos a entrar /sair sem a presença dele a bordo. Muitas vezes encontrava-se a manobrar um mineraleiro de 150.000 toneladas no porto do Saco, na extremidade Norte da Baía de Moçâmedes, manobra demorada e remetia para nós a decisão de atracarmos à nossa responsabilidade, indicando-nos o local de atracação, ou então esperar que terminasse a manobra e regressasse ao cais comercial, o que na maioria dos casos implicava uma espera prolongada.

O Libório, como mestre da lancha, enquanto esperava a hora de ir desembarcar/embarcar o Rente, do navio que procedia/demandava o Saco, passava/largava os cabos a/de terra, facilitando-nos a manobra, especialmente quando tinhamos que atracar em espaços apertados, outras vezes não podia e tinhamos que fazer a aterragem com maior precaução para não provocar avarias, que não só originavam participações a regularizar na Capitânia, como também implicavam perda de tempo em reparações, custos e prejuízos, prejudiciais à nossa actividade da pesca.

O Porto Comercial situado no extremo sul da baía, distava da cidade uns bons dois quilómetros, numa estrada agreste, despida de vegetação, sob o sol inclemente. O amigo Libório estava sempre disponível para nos transportar até à cidade. Fazia várias viagens de ida e volta para instalar nas esplanadas e bares os tripulantes do navio.

 

 

Praia das Miragens

 

Recebia como retribuição a amizade e respeito de todos nós que lhe enchiamos o carro de bens essenciais, que ele rejeitava, mas que acabava por aceitar, porque o vencimento não era muito e um garrafão de vinho da Metrópole bebia-se bem e umas batatas, umas pescadas e às vezes umas bocas de caranguejo, davam sempre jeito lá em casa. 

Em Moçâmedes juntavam-se por vezes vários navios de pesca à descarga ou a aguardar vez. Este ajuntamento era motivo para entre a oficialidade organizar-se uma festa. O meu amigo Comandante Manuel Marques Damas, "Almirante" do navio ALTAIR da Companhia Portuguesa de Pesca, era o anfitrião nº 1 dessas festas famosas a bordo do seu navio.

Primava no receber, no saber fazer e estar, por isso o Altair era o navio "Almirante " da frota de arrasto nos mares do Sudoeste Africano.

Numa dessas estadias, coube ao navio Tropical, do comando do Capitão Rui Sousa, realizar essa festa do oficialato e companhia(...). Para quebrar a monotonia da vida a bordo,e animar a festa, convidavam-se uns amigos e amigas que normalmente retribuíam com convites para suas casas e nos visitavamos sempre que estavamos em terra. O amigo Libório também se encontrava presente ou ele não fosse Capitão da Marinha Mercante do Panamá.

Nem de perto nem de longe se podia comparar a festa do Tropical com as do Altair, até porque as condições logísticas dos navios são muito diferentes. Apesar dessas restrições, improvisou-se um jantar volante na ponte do navio, onde havia mais espaço e se podia circular mais à vontade e respirar o ar da baía.

 

 

N/m Tropical

 

A festa estava animada com música e dança à mistura, a dada altura, já estavamos nas sobremesas, o Libório que estava a comer um pastel de côco, fica muito aflito, "asfixiado" com o pastel na boca, corre para a asa da ponte, tenta tirar o pastel que estava colado no céu da boca  e deita  o pastel ao mar. Acto contínuo exclama: - Ai a minha placa, lá foi a minha rica placa!

Ficamos boquiabertos, olhando uns para os outros, interrogativamente. Desconhecíamos que o Libório usasse placa dentária. O pobre do homem estava inconsolável, deitava as mãos à cabeça, entrava e saía da ponte, indo para a borda e olhando para a água.

Como é que eu vou fazer agora, que vai ser de mim sem placa? - Tentamos dar-lhe ânimo, que não era o fim do mundo. Foi então que ele, depois de estar mais calmo, nos confidenciou que tinha estado dois meses em Luanda para tirar os dentes podres e colocar esta placa que agora jazia algures no fundo da baía de Moçâmedes.

Compreendemos perfeitamente a preocupação e estado de choque em que ficou o nosso amigo e, sem dizermos nada uns aos outros, pensamos em pagar-lhe a prótese dentária, como, mais tarde, revivendo e rindo-nos com o episódio, desabafamos as nossas intenções.

Escusado será dizer que a festa terminou ali, alguns ainda foram até ao bar Americano esquecer as mágoas num trago de Whisky, enquanto outros preferiram acabar a noite na solidão do camarote, ouvindo música, lendo um livro, pensando na família que deixaram lá longe na Metrópole.

 

 

Em Moçâmedes

 

No dia seguinte, quando acordei, antes de tomar o pequeno almoço, prescrutando um barulho estranho fui indagar e, para meu espanto, deparei com o Libório debruçado na borda falsa, por vante do casario da ponte e, dando-lhe uma palmada nas costas, que o fez estremecer de susto, perguntei:

- Que se passa Libório, que fazes aqui tão cedo?

- Anda um mergulhador meu amigo lá em baixo - o Libório tinha amigos em todo o lado - a tentar encontrar a placa.

- Era bom que encontrasse amigo, estamos todos a torcer para que isso aconteça.

Em boa verdade não acreditava muito, até porque a água estava muito turva, mas havia que dar força ao amigo que estava em sofrimento, mas que tinha fé do mergulhador encontrar a prótese.

Ao fim de mais de quatro horas de mergulho sem que o Libório arredasse da posição de bruços no varandim do navio, o mergulhador apareceu à superfície exibindo numa das mãos a arcada dos dentes postiços do Libório. Este começou de pular e gritar numa alegria louca.

-Saiu-me a sorte grande! Enquanto me abraçava esfusiantemente numa alegria indescritível.

Queria fazer uma festa, pagar bebidas a todos, não cabia em si de contente, tanta felicidade transparecia no seu rosto.

Passados uns tempos depois do rocambulesco episódio, em conversa com ele, em tom de brincadeira perguntavamos-lhe, se tinha lavado bem a prótese, porque ela tinha sido encontrada na direcção do esgoto do navio e também do esgoto da cidade.

O Libório ria-se à farta das nossas insinuações maliciosas, mas creio que lá no fundo, pensava:

- Gozem, gozem que enquanto voçês gozam eu vou-me rindo!

E ria perdidamente com aquele ar de felicidade estampado no rosto tisnado do sol do deserto e da maresia da baía, mostrando a dentadura branca recuperada.

Passaram-se os anos, muitos, um dia venho encontrar o Libório na Escola Náutica Infante D. Henrique em Paço d'Arcos. A vida dá muitas voltas, o Libório regressou de África após a descolonização e veio encontrar refúgio e trabalho como jardineiro da escola, sempre com o mesmo sorriso de bondade num rosto mais envelhecido pelos anos e amarguras da vida, mas sempre bem disposto e brincalhão.

 

 

 

 

publicado por dolphin às 18:10
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24
Set 07

 

 

Que beleza !

 

 

 

Que maravilha !

 

 

 

 

Que saudade !

publicado por dolphin às 21:08
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23
Set 07

 

 

 

 

Rio Lima - lugre de 4 mastros, nos estaleiros do Campo da Feira no príncípio do sec.XX, no dia do bota-abaixo.

 

 

Rio Lima - Navio-motor, no anteporto, depois de sair da doca de construção dos ENVC, em 1952.

 

 

Leone - ex. Rio Lima - Arrastão, nos últimos dias da sua existência, cerca de 1995.

 

 

publicado por dolphin às 16:34
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22
Set 07

A Fundação Gil Eannes, recebeu pela segunda vez este ano o Capitão Valdemar Aveiro que veio apresentar o livro "80 Graus Norte - Recordações da pesca do bacalhau".

Mais uma vez tive  o grato prazer de ouvir o Capitão Valdemar contar alguns aspectos e passagens vividas durante a sua vida na pesca do bacalhau que me encantaram e fizeram reviver com saudade, momentos idênticos.

Neste momento ainda não tive oportunidade de ler o livro editado pela Papiro Editora, mas não resisti a ler a introdução e fiquei sensibilizado pela riqueza de forma como se refere à Epopeia do Bacalhau: - " Há séculos que os marinheiros Ilhavenses, nómadas de um deserto líquido, o atravessam em todas as direcções. Muitos perderam-se na sua imensidão, gota diluida sem qualquer valor. E, geração após geração,outros retomaram o facho e continuaram a caminhada, seguindo os mesmos trilhos, sem que as suas pegadas deixassem qualquer rasto."

Por este pequeno excerto da introdução podemos imaginar a arte de colorir as histórias com que o autor já nos habituou noutros trabalhos editados anteriormente.

publicado por dolphin às 17:53
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20
Set 07

 VIGIA...NDO !

 

 

AGUA...RDANDO !

 

 

 

A PARTIDA...

 

 

...EM SETÚBAL.

 

 

NA GROENLÂNDIA...ENCALHADO! 

 

TENTATIVA FRUSTRADA..

publicado por dolphin às 00:02
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16
Set 07
Moçâmedes 1972. Era na altura o Imediato do arrastão de pesca "TROPICAL" da praça de Aveiro, propriedade da Sociedade de Pesca Miradouro, SA. que operava nos mares do Sudoeste Africano.
Moçâmedes era o porto base onde efectuavamos os abastecimentos e descargas do pescado para os frigoríficos da ARAN (Associação dos Armadores da Pesca de Angola).

 
Em Moçâmedes
A pesca efectuava-se para sul do paralelo 18' 00" S em fundos arenosos onde abundava a pescada (marmota) em grandes quantidades. O tamanho da marmota era por vezes de baixo calibre o que motivava o desperdício de grandes quantidades que eram deitadas novamente ao mar, para gáudio dos leões marinhos que abundavam nessa zona.
Por vezes acontecia quando da manobra de virar a rede, um ou mais leões marinhos serem apanhados pela rede. Era um pandemónio a bordo. Depois de despejado o saco do peixe no parque de pesca, o animal encurralado, fora do seu ambiente natural, com mais de quinhentos quilos, esmagava as frágeis marmotas, tentando libertar-se do cativeiro e dando urros impressionantes de desespero. A princípio não sabíamos o que fazer, o mestre de redes , o contra-mestre e os pescadores tentaram passar um laço na tentativa de içarem o leão para o convés e arrastá-lo para a rampa da popa, mas o corpo roliço  do animal impossibilitava essa tarefa.
Quando  isto acontecia todo o pescado estava perdido e gastava-se imenso tempo. A solução era matar o animal. Embora fosse um acto repugnante tinha de ser tomada essa atitude para bem do animal que estava em sofrimento e acabava por morrer  lentamente e também porque o navio tinha de continuar a pescar. Era encarregue dessa ingrata missão o mais corajoso e ousado.

 

A manga do saco com peixe malhado

 

Numa das frequentes idas a Moçâmedes, normalmente de quinze em quinze dias, para descarregar as cerca de 250 toneladas de peixe, carga máxima do navio, fomos informados que o navio ia fazer uma adaptação dos paióis da popa, normalmente utilizados como depósito de material de apoio à pesca, redes, cabos, fio, esferas de borracha para arraçal, etc., para camaratas de "pescadores".
A razão desta transformação tinha a ver com a admissão de doze tripulantes indígenas para filetar a marmota partindo do pressuposto que os mesmos eram especialistas no manuseamento de facas, como era o caso das facas de filetar. Ainda estou para saber a origem desta informação, porque dos nativos que recrutei durante as várias estadias, não encontrei grande habilidade e agilidade na filetagem da marmota.
Coube-me a mim a tarefa de escolher os doze novos "recrutas" a filetadores dentre as dezenas que formavam em fila junto ao portaló do navio, aguardando pacientemente debaixo do sol intenso a chamada.

Uma sacada de 20 toneladas

Os critérios que estabeleci para seleccionar os candidatos a embarcar foram: 1-ter cédula marítima; 2-ter boa compleição física, portanto apresentar um aspecto saudável. Não foi difícil obter os primeiros dez pretendentes. Quando procedia à segunda escolha para apurar os dois que faltavam um dos que estavam ainda na fila adiantou-se e, decidido, apresentou-se e pediu humildemente para que o recrutasse porque precisava muito de ganhar dinheiro para sustentar a família, como todos os outros. Apreciei a forma genuína, natural e humilde como se dirigiu e mirei-o para apurar do aspecto físico parecendo-me franzino mas teso. Recrutei o 11º.elemento e chamei-o de parte dizendo-lhe: - Vou-te contratar porque me pareceste sincero e natural, mas com uma condição: - se não cumprires com o trabalho não te pago. Acenou com a cabeça em sinal afirmativo, agarrou-me na mão e intentou beijá-la, acto que repeli de imediato.
Terminados os trabalhos de instalação dos beliches nos aposentos improvisados nos paióis renovados e ventilados como convinha, para receber os novos tripulantes, candidatos a filetadores, largamos de Moçâmedes em direcção aos pesqueiros, começando por largar a rede a sul do paralelo 18 por forma a fazer um lanço (operação completa de largar e virar a rede de pesca), apanhando a curva do 19 ( neste ponto o fundo faz uma curva pronunciada tipo "S" onde normalmente se faziam boas capturas).
A pesca era abundante e, se tudo corresse bem, como esperavamos, dentro de doze a quinze dias estaríamos de volta a Moçâmedes. O 12º elemento que escolhi estava a cumprir conforme o prometido. Tinha recomendado ao contra-mestre que estivesse de olho nele e eu próprio, quando saía de quarto, passava pelo parque de pesca ver como corriam os trabalhos e punha o olho de lado, disfarçando, para não dar azo a especulações dúbias e verificava que o rapaz se adaptava ao ofício e era despachado.

O parque cheio até ficar peixe no convés

Passaram-se dois ou três dias e o mestre de redes, durante o meu quarto diurno de serviço( como éramos só dois oficiais da ponte, capitão e imediato, os quartos eram de seis horas cada, eu fazia os quartos do meio dia às seis da tarde e da meia noite às seis da manhã, enquanto o capitão fazia os quartos das seis da tarde à meia noite e das seis da manhã ao meio dia), o mestre de redes veio ter comigo à ponte com ar de caso e perguntei-lhe: - Então mestre que cara é essa? Não me diga que está doente?
Eu não senhor imediato, mas temos um dos novos que nos vai fazer ir para terra mais cedo. Huumm?
Como assim, não me diga que é o "cantinflas"? ( este foi o nome com que o "baptizaram" por ele caminhar como o célebre comediante francês).
Parece que é bruxo senhor imediato !!! -retorquiu o mestre de redes espantado com a minha pontaria. De facto eu já tinha observado, das vezes que ia ao parque de pesca, o esgar de dor que o rosto moreno do pobre nativo deixava transparecer apesar de pretender disfarçar desviando o olhar.

O "Cantinflas" comigo

Ele não tinha coragem de se queixar em face da promessa que me fizera no acto de embarcar, porque queria chegar ao fim da viagem para receber o dinheiro, móvil que o trouxera ali.
Antes de embarcar trabalhava na estiva a carregar sacos de milho no porto, mas não era um emprego certo e ganhava pouco, 2$50 ao dia, enquanto no navio comia, dormia e ganhava 20$00 por dia, quase dez vezes mais, daí a enchente de pretendentes a um lugar a bordo.
Como me confidenciou mais tarde, com o dinheiro da viagem podia comprar várias cabeças de gado que permitiam sustentar os cinco filhos e as duas mulheres que tinha lá na terra para os lados de Nova Lisboa.
Quando terminei o quarto de serviço fui directamente ao paiol da popa do lado de estibordo, onde encontrei o "Cantinflas" estirado no beliche( cama estreita para ser instalada no camarote), com a perna direita esticada sobre a tábua da borda. Fiquei horrorizado com o que vi. A perna estava esburacada e um misto de pus e sangue saía pelas fendas expostas. Por baixo da perna, não para aparar a porcaria que brotava da perna, mas para suavizar o peso da perna sobre as feridas da barriga, tinha colocado uma toalha sobre a qual escorria o líquido nauseabundo e podre. Um cheiro pestilento invadia todo o compartimento, apesar da ventilação forçada, recentemente colocada, para tornar habitável aquele espaço, antes destinado a abrigar os apetrechos de pesca. Fiquei desolado e, confesso, desorientado, sem saber o que fazer.
Em toda a frota portuguesa que operava nesta zona, não existia a bordo de qualquer navio nenhum médico ou enfermeiro. Normalmente quem faz os curativos às feridas que habitualmente costumam aparecer, é o imediato.
Coube-me a missão delicada e ao mesmo tempo ingrata de tentar remediar o mal que alastrava por toda a perna do infeliz  e pobre homem.
Apesar do sofrimento estampado no rosto , o “Cantinflas” mostrava sempre um sorriso quando antes de almoçar lhe ia fazer o tratamento, retirando das pústulas ulcerosas meio balde de pestilenta matéria contaminada e mal cheirosa que retirava com as compressas e me deixava à beira de vomitar.
Durante dez dias quase não comi tão enojado ficava após o curativo. Um pão com manteiga e um copo de leite era o meu almoço. De dia para dia ia notando as melhoras e isso motivava-me a continuar. Por sua vez o infortunado nativo acatava de bons modos todas as instruções que lhe dava para precaver infecções que viessem obrigar a uma arribada forçada e consequentemente a perda de pesca para o armador e em especial toda a tripulação que dependia da quantidade de peixe processado e estivado no porão.
A pesca era abundante e o pessoal não dava escoamento ao peixe capturado. Chegou-se a parar de pescar, metendo a rede dentro e fundeando até processar a maior parte da marmota, mas a capacidade de congelação era insuficiente e não havia outra solução senão alijar( por pela borda fora) pescado que não se encontrava já em boas condições devido ter muito tempo sem eviscerar como também porque a marmota é um peixe muito sensível e pouco resistente quando se encontra prensado um sobre o outro muitas horas.
O “Cantinflas” vivia tudo isto com notória preocupação e pesaroso por não poder ajudar. Uma a uma as feridas iam secando e fechando e o rapaz queria trabalhar. Dissuadi-o e, num tom ameaçador, proibi-o de sequer tentar ir ao parque de pesca e andar sobre a perna pondo em risco a recuperação e todo o meu trabalho. Para suavizar o seu sofrimento e fazê-lo sentir útil, permiti que descascasse batatas na cozinha, sentado e com a perna apoiada.
Em treze dias apenas as duzentas e cinquenta toneladas que com a habilidade do contra-mestre era possível estivar no porão, tinham-se completado e regressamos a Moçâmedes para efectuar a descarga para os frigoríficos da ARAN. As feridas do “Cantinflas” estavam saradas, mas era preciso ir com ele ao médico para ser observado e fazer um diagnóstico.
Logo que o navio atracou o rapaz ficou eufórico e queria ir para terra sem querer saber de ir ao médico. Na opinião dele estava curado e eu era o melhor “médico” do mundo. Não queria saber de mais nada. Eu tinha-lhe salvo a vida e só isso contava para ele. Naquele seu jeito de andar à “Cantinflas”, movia-se no convés de um lado para o outro, feliz por ter recuperado o andar de que estivera privado tantos dias por impossibilidade sua e por imposição minha.
Como não havia doentes com gravidade só no dia seguinte o médico nos atendeu. No final da consulta e depois de explicado o acontecido, o médico deu-me os parabéns pelo trabalho realizado e afirmou rematando – “nem o melhor enfermeiro fazia melhor, senhor imediato”. Fiquei naturalmente contente por este reconhecimento, mas mais por ter conseguido salvar a perna do malogrado “Cantinflas”.
Quando procedia ao pagamento da viagem aos homens recrutados especificamente para o processo de filetar a marmota mais pequena, o ”Cantinflas” não queria receber.
- Siores mediato, não podê recebê porque não trabalhá . E teimava, dizendo que ainda tinha a pagar por ter sido tratado. Comoveu-me este carácter recto e humilde, agarrei-lhe na mão e “obriguei-o” a aceitar contra a sua vontade.
A estadia foi mais demorada do que prevíamos porque havia outros navios à nossa frente a descarregar e um navio transportador frigorífico, salvo o erro o” Baía de S. Brás”, a carregar peixe com destino à Metrópole.
Na véspera da partida para nova viagem o “Cantinflas” veio falar comigo, cabisbaixo, envergonhado e triste.
- Siores mediato esculpa, tê vergonha, está triste, ma na podê i na viagem.
- Mas porquê “ Cantinflas”? Nesta altura toda a gente a bordo o tratava por “Cantinflas”, alcunha que ele adorava.
- Siores mediato, mia mãe tá morrê, tenho que i vê ela. E começou de chorar, soluçando, num comovente estado de alma que contagiava e fazia vir as lágrimas aos olhos.
O “ Cantinflas” lá foi para a terra e nós para o mar. Como já não havia tempo para recrutar substituto e para efectuar a matrícula fomos para o mar com menos um filetador. Quando a viagem terminou e atracamos, lá estava no cais o “Cantinflas” à espera do navio, sorridente e feliz.
Mal entrou a bordo, veio directo ao meu camarote eufórico querendo transmitir-me algo importante.
- Que se passa “Cantinflas”? perguntei surpreendido pela forma como ele se dirigiu a mim.
- Siores mediato “Cantinflas “ tem presente pa siô. Refutei imediatamente qualquer presente e mandei-o dar uma volta e que não me chateasse.
- Ma siô na podê recusá é ofensa. É milhó prenda que pode ofrecê.
O “Cantinflas” saiu cabisbaixo, amuado com a minha recusa. Eu sabia a natureza do presente e por isso recusei.
É habitual entre os nativos, em sinal de reconhecimento por algo de importante que fazem por eles, comprar uma rapariga virgem para oferecerem de presente a outra pessoa. Isto faz parte da cultura deles, ficam muito ofendidos quando tal retribuição não é aceite, como foi o meu caso. Eu já tinha previsto que tal iria acontecer, mas era contra os meus princípios aceitar tal presente, mesmo que isso fosse de encontro às tradições culturais da etnia a que ele pertencia.
A bordo, fui censurado por alguns, mas também louvado por outros. De qualquer forma, fiquei de consciência tranquila por assim ter decidido.
O “Cantinflas” não foi na viagem seguinte, tendo ficado ofendido comigo pela rejeição. Segundo a tradição cultural do seu povo é um ultraje e uma ofensa imperdoável que devia ser remida através duma luta entre os dois.
Mais tarde vim a saber que o “Cantinflas” regressara à sua terra e não mais embarcara.
 
 

 

 

publicado por dolphin às 15:36
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15
Set 07

Este é o título de um livro escrito pelo casal Luso-americano, Lidia Jorge e Manuel Luciano da Silva e editado pela Quidnovi há cerca de um ano.

 

    

 

Capa e contra-capa do livro

Este livro serviu de argumento ao filme de Manuel de Oliveira, Cristovão Colombo - o Enigma, que foi exibido recentemente  na 64ª Mostra de Cinema de Veneza, fora de competição e que foi considerado à margem do festival pela crítica independente, como o melhor do festival.

Considerado  " O filme mais significativo da Mostra", valeu a atribuição a Manuel de Oliveira do Bisato D'Oro, pela crítica independente do Festival de Veneza.

 

 

 

 

 

publicado por dolphin às 22:57
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08
Set 07

A onda de assaltos que ocorreu na última semana em Portugal é preocupante e coloca o nosso país como um dos menos seguros.

A estratégia dos assaltantes parece estar dirigida para as proximidades, no tempo e no espaço, de eventos importantes. Primeiro foi o assalto ao BPI em Viseu no início da semana, depois foi ao Museu do Ouro e Ourivesaria Freitas em Viana do Castelo a meio da semana e anteontem e ontem, respectivamente em Caminha e na coudelaria de Braço de Prata, ocorreram mais furtos.

Dois deles de impacto internacional devido à presença de pessoas famosas, políticos e milionários, atendendo ao risco em equação e ao stafe de segurança envolvido nas operações, não deviam ter acontecido.

A imagem que os jornalistas estrangeiros, em grande número para a cobertura dos eventos, ficaram do nosso país e que naturalmente vão referir nas reportagens, em nada será benéfica para o nosso país em termos gerais, mas muito especialmente no sector turístico.

O que no meu entender fascina e atrai os muitos turistas que nos visitam deve-se para além do clima ameno, ao ambiente calmo e sem sobressaltos que se vive no nosso país. Com estes acontecimentos recentes, certamente que teremos descido alguns lugares no ranking da segurança. Por outro lado, a descoordenação evidente, pelo menos ao nível da informação, com o ministro a vir afirmar uma coisa que na realidade não aconteceu, pondo em relevo o papel da forças de segurança e depois os responsáveis por essa coordenação virem dizer que o que o sr. ministro  disse estava certo mas não era bem assim. Então em que ficamos e em quem devemos acreditar?

Se juntarmos a estes factos a recente suspeita, da presença da ETA em território português, chegamos à conclusão que Portugal já não é o paraíso de há uns anos e é preciso acompanhar a onda de violência e tomar medidas concretas e correctas para atenuar este mal.

Por agora foram só uns arranhões. Coisa de pouca monta, mas podem vir a ter grandes e graves consequências.

O povo português costuma dizer, "o seguro morreu de velho" e, " mais vale prevenir do que remediar ", confiemos na sabedoria popular e tomemos as medidas adequadas urgentemente.

publicado por dolphin às 18:39

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