O Imediato e o enfermeiro
O 3.º motorista e o Contramestre
Preparando os botes
Partindo para a faina
Os últimos representantes da famosa White Fleet (frota branca) largaram finalmente do cais da cidade, junto à igualmente famosa Water Street na acolhedora cidade de S. João da Terra Nova, ou simplesmente St. John's. Eram eles o Novos Mares e o São Jorge da praça de Aveiro, que em Abril largaram de Lisboa juntamente com o Ilhavense, para a última campanha da pesca do bacalhau à linha. Havia um mês que o Ilhavense se perdera nos Virgin's Rocks e os dois navios sobreviventes recolheram os náufragos, levaram-nos para St. John's e desde essa altura não mais regressaram aos bancos.
As negociações com os pescadores, seus representantes e armadores foram infrutíferas e não havia outra solução senão regressar ao porto de origem. Durante o impasse das negociações, uma delegação de altos representantes da Junta de Salvação Nacional , deslocou-se a St. John's numa tentativa de aproximar as partes apelando ao bom senso, mas desistiu, após uma reunião que se realizou na casa dos pescadores.
O Imediato
Nada fazia demover os pescadores de regressar a Portugal. Estavam ansiosos para ver as modificações que tinham ocorrido recentemente no seu país. As notícias que recebiam de casa fazia-os imaginar um "Eldorado" que mais tarde verificaram não existir.
Era compreensível esta ansiedade, duma forma geral todos nós estavamos curiosos para saber ao certo o que estava a acontecer.
Pouco passava do meio dia quando deixamos de ver a garganta estreita da embocadura do porto de St. John's, envolta num manto de neblina que pairava sob as frígidas águas do oceano.
Os dois navios navegavam lado a lado a cerca de duas milhas, só vistos no écran do radar juntamente com pequenos growlers (blocos de gelo) errantes, quais pintaínhos de tenra idade à volta da mãe, dum iceberg encalhado a pouca distância da costa.
Icebergs encalhados pelo norte de St. John's
Era o quarto dos capitães que, através do VHF, traçavam a estratégia da viagem de regresso, ainda crentes no convencimento das companhas arriarem nos Virgin Rocks para pescarem peixe fresco para a viagem.
Enquanto esperavamos no salão pela chegada do Capitão para o jantar, fomos sacudidos pelo balanço transversal do navio, impelido por um mar cavado de sudoeste que o fazia estremecer e vibrar de proa à popa, qual miúdo apavorado com o temporal. Ele que tantos temporais vencera, nas idas e vindas para os bancos, estava agora temeroso como que pressentindo algo de estranho.
O criado, cambaleando, tentando equilibrar a terrina da sopa que a custo conseguiu trazer na tormentosa viagem da proa para a popa, amparado pelas pilhas de botes que protegiam da surriada que "chiparrava" de estibordo, serviu uma concha em cada prato para não entornar. Ainda não tinha acabado de servir todos os "oficiais", uma voz aflita e amedrontada gritava:
-Fogo, acudam há fogo na casa da máquina ! Senhor capitão está tudo a arder, estamos perdidos! - era o ajudante de máquinas do quarto do 2º motorista que este mandara pedir socorro na tentativa de poder debelar o incêndio que deflagrara no quadro eléctrico da casa da máquina junto à rabada.
O capitão e o Imediato
Num àpice, como se uma mola nos impulsionasse, enquanto o capitão corria para a casa da máquina para se inteirar da situação e tentar controlar o incêndio, cada um correu para os seus postos de salvamento.
A primeira ideia que me ocorreu foi galgar as escadas de acesso à ponte e chamar pelo "Novos Mares":
- Alô "Novos Mares" aqui "São Jorge", temos fogo a bordo, venham rápido!
E acto contínuo, comecei de emitir um Mayday (pedido de socorro) para toda a navegação. Enquanto isso, olho pela vidraça da porta da ponte do lado de estibordo e vejo sair pela chaminé do navio uma nuvem de fumo escuro e espesso e um cenário macabro e fantasmagórico perpassou pelo meu cérebro confuso e antevi a explosão dos inúmeros bidons de gasolina, para os motores dos botes, entre eles um tanque de mil litros peado(preso) no tombadilho das baleeiras junto à chaminé. Um arrepio invadiu todo o meu corpo num estremeção que não sei se era de frio se de medo. Desci ou "voei", não sei bem, para o convés onde o contramestre tentava fazer disparar a válvula de insuflação de uma jangada e fazendo parelha com ele conseguimos abrir a totalidade das jangadas do lado de estibordo, enquanto do outro bordo o Capitão com o chefe de máquinas fazia o mesmo.
O São Jorge a navegar
O navio balouçava incessantemente, atravessado à vaga cavada, projectando-nos ora contra a antepara ora contra o varandim. As jangadas, uma a uma, iam-se enchendo de tripulantes que partiam, cortando a boça que os ligava ao navio, afastando-se na bruma densa e escura. Naquelas latitudes nesta época do ano às seis da tarde já é noite, isto aconteceu precisamente por volta dessa hora quando iniciavamos o jantar. Depressa a noite caiu sobre nós como um manto escuro e húmido da neblina que volatizava do mar gelado que salpicava os corpos de pingos de gelo fazendo-nos tiritar de frio sem agasalhos que na azáfama do salvamento nem sequer houve tempo de ir buscar ao camarote.
As labaredas do incêndio deflagravam em laivos amarelo rubro crepitando pela chaminé. Pelos espaços abertos, portas, vigias, albóios, saíam fumaradas espessas entrecortadas de labaredas intermitentes, tentei entrar no meu camarote que ficava por baixo da ponte do lado de estibordo mas fui impedido, quase intoxicado pelo fumo espesso. Num reflexo instintivo deitei a mão a um casaco de cabedal castanho que antes da partida pendurara num cabide por cima do sofá à esquerda de quem entra no camarote. Não havia luz no camarote, mas um brilho intenso invadiu-o como um relâmpago mal me dando tempo de fechar a porta estanque do camarote evitando que as labaredas me queimassem.
Arriando os botes
No meio deste cenário tétrico, acossado pelo balanço desencontrado, consigo agarrar-me ao varandim e deparo com um pescador de navalha na mão, prestes a cortar a boça da última jangada. Agarro num ferro que por ali andava solto e ameaço atirar-lho à cabeça se ele tentar cortar o elo de ligação da jangada ao navio, único meio de salvamento que me resta.
Já não há movimento de pessoas a bordo, só se ouve o crepitar das faúlhas e o ranger das tábuas, o fogo está prestes a atingir os bidons de gasolina que se encontram por cima da minha cabeça, o navio baloiçava ora aproximando-se ora afastando-se do costado do São Jorge. Por fora da borda, com os pés no trincaniz e as mãos no varandim, olhando para o mar tentando divisar a jangada que ora aparecia ora desaparecia da minha vista, desloquei-me longitudinalmente na esperança de conseguir dar um salto certeiro e cair dentro da jangada evitando cair na água gelada.
Ao fim dum longo tempo que não sei quantificar, exausto, sem forças para me aguentar mais tempo, os braços e as pernas cederam e deixei-me cair no abismo, qual jogador desesperado aposta num golpe de sorte ou tudo ou nada, assim eu entreguei o meu destino nesse salto para o desconhecido.
Uma dor aguda e profunda na perna direita como um cutelo sobre um osso acordou-me para a realidade, dando a sensação imediata de que tinha partido a perna, mas estava a salvo dentro da jangada.
Ainda mal refeito da dor que me invadia a perna, felizmente não estava partida, pela abertura da lona da cobertura da jangada vejo o clarão das chamas brotando pelo albóio da casa da máquina e imediatamente ordenei que pegassem nos pequenos remos da jangada e começassem a remar para nos afastarmos do navio o mais rápido possível afim de evitar o efeito de sucção quando o navio fosse para o fundo. (Continua)