O MILAGRE...
Naquela época, em que as comunicações eram ainda muito incipientes, e não se tendo encontrado sinais da tripulação, restava a esperança que tivessem sido recolhidos por algum navio.
No dia 12-12-1913 o jornal “A Aurora do Lima” noticiava “No combóio das 7 da tarde de ante-hontem chegou a esta cidade a tripulação da chalupa “Rasoilo”, que, como desenvolvidamente noticiamos, appareceu abandonada e desmastreada ao mar da Guardia, sendo rebocada para Vigo, onde se ultimam negociações para que volte ao nosso porto.”
Entre as gentes do mar a esperança é sempre a última a morrer. Foi o que aconteceu com o mestre da chalupa “ Mensageira” que sempre acreditou que os tripulantes estavam vivos e por isso “O mestre da chalupa “Mensageira”, sr. António Machado, que é um verdadeiro crente e devoto da Virgem d’Agonia, prometteu uma missa pedida, caso os tripulantes da “Rasoilo” fossem levados a porto de salvamento.”
A explicação de como aconteceu o acidente e consequente abandono, é-nos dada pelos tripulantes em discurso directo que se transcreve na íntegra:
“Sahimos de Setúbal no dia 4 de Novembro, com destino a Vianna. A “Rasoilo” trazia carga diversa. Seriam 7 horas da manhã do dia 9, entre o Porto e Espinho, a 30 milhas(10 léguas) de longitude, uma violenta volta de mar arrebentou a vela e partiu, rente ao convés, o mastro grande.
Imagine o nosso desalento ante semelhante desastre. Só Deus nos poderia salvar. Uns rezavam, outros choravam. E olhe que o caso não era para menos!...
Só em me lembrar este bocadinho, arrepiam-se-me os cabellos!... Era um quadro digno de ver-se; um navio desmantellado, à mercê das ondas, e a sua tripulação de joelhos sobre o convés, a implorar a protecção divina!...
Mas vamos à narrativa. Depois de ganharmos um pouco de ânimo, tratamos de pôr as coisas em estado de algum caminho podermos fazer, embora entregues ao mar e tempo, pois que o navio não tinha governo.
O mastro quando cahiu arrastou a cozinha, que foi pela borda fora. Escusado será dizer que não se podia comer coisa alguma.
O navio era constantemente enxovalhado pelas vagas. Conforme podémos e fomos alliviando, para que assim resistisse ao embate das ondas e alguma volta de mar nos não limpasse. E nesta afflictiva situação nos conservamos sem que ao menos ao largo se divisasse uma vela que nos trouxesse uma leve esperança!...
Só Deus nos podia valer.
- E que tempo durou tal conjuntura?
Às 7 da manhã do dia 9 cahiu o mastro e só às 9 da manhã do dia 11 é que avistamos um vapor! O sr. não calcula a impressão que nós sentimos quando lhe vimos o fumo!
Os srs. dos jornais talvez não acreditem em Deus; pois vão para o mar, assistam aos transes afflitivos a que estão sujeitos os que por lá andam, e venham depois, por mais livres-pensadores que sejam, dizer-nos que Deus não existe.
Obtemperamos ao nosso interlocutor de que somos cathólicos, sem carolismo, e portanto crentes de que Deus existe.
Pediu-nos desculpa e prosseguiu na narrativa.
O vapor, ao qual fazíamos signal pedindo socorro, a nós se dirigiu.
Estabeleceu-se então o serviço de salvação. O sr. não imagina o afan com que a tripulação do vapor trabalhou no lançamento, ao mar, do salva-vidas. Foi um trabalho insano! Uma lucta mais que humana! O salva-vidas no mar e os seus seis tripulantes, cada um a seu remo, eram seis leões; cada qual dando o que mais podesse para se approximar da “Rasoilo”. Foi um bocado bem difficil, mas na graça de Deus e Maria Virgem, cá estamos em terra firme.
O mestre não queria abandonar o navio; mas nós e os nossos salvadores, que bem reconheciam a emminência do perigo, impozemo-nos e elle não teve remédio senão abandonar a nossa querida “Rasoilo”.
(O nosso interlocutor emocionou-se e teve um momento de pausa, parecendo engulir as lágrimas).
Pedimos ao comandante do vapor para rebocar a chalupa, mas elle disse que o mar era muito e por isso só podia salvar as vidas.
Depois approximou-se um vapor de cabo submarino e a seguir passou um paquete, que parou, para nos prestar auxilio, que não necessitavamos por já estarmos a bordo do “Scawby”, navio de 6.010 toneladas.
O commandante disse-nos que ia telegrafar para terra participando levar náufragos a bordo. Pedimos para nos deixar no porto mais próximo; não esteve pelos autos, allegando, e com razão, o violento temporal que fazia; e lá fomos até Newport.
Que santo homem elle é. Que de carinhos elle nos dispensou! Ainda há boas almas!
A tripulação tambem não teve mais que nos fazer.
Em Newport estivemos cinco dias e fomos sempre muito bem tratados.
A propósito: Diga no seu jornal aquillo que já hontem lhe pedimos quando fomos à redacção. O nosso reconhecimento ao capitão do vapor “Scawby”, aos marinheiros e aos consules portugueses. Diga que os marinheiros da “Rasoilo” lhes beijam as mãos reconhecidamente.”(1)
Foram rezadas missas a pedido do sr. António Machado, mestre da chalupa “Mensageira” e no dia seguinte em cumprimento de voto da tripulação da “Rasoilo”, ambas acompanhadas por vozes e orquestra de Carvalho& Cruz.
Viana do Castelo, 2009-12-28
Manuel de Oliveira Martins
_________________________
(1)-A Aurora do Lima - 15-12-1913