A GUERRA E A POBREZA EM VIANA
Portugal ainda não refeito da mudança radical que se operou com a revolução Republicana de 1910, com uma instabilidade governamental, que impedia a saída da crise, estava envolvido na 1.ª Grande Guerra Mundial agudizando de forma significativa a vida dos seus habitantes.
Viana do Castelo e toda a Região do Alto Minho, sentiu ainda mais os efeitos da crise, política, económica, financeira e social em que o país estava mergulhado.
Havia pobreza em Viana do Castelo, os pescadores não iam ao mar motivado pela escassez de peixe na costa, os lavradores dependentes duma agricultura de subsistência pouco produziam, não havia poder de compra entre as classes mais desfavorecidas que dependiam do seu trabalho e este não havia.
A Parceria de Pescarias de Viana, recentemente constituída estava com dificuldades em vender o bacalhau capturado no 1.ºano da sua actividade. Por este motivo e também para amenizar a vida dos mais carenciados, decidiu “oferecer ao município o bacalhau que tem armazenado para ser vendido ao preço de 350 reis o quilo do de 1.ª, 310 o de 2.ª e 280 o de 3.ª”.
Foi uma medida acertada tomada pelo gerente da empresa, sr. João Baptista Ferreira que desta forma resolveu duas situações, não ganhou mas não perdeu e possibilitou que as classes trabalhadoras pudessem “tirar a barriga de misérias” adquirindo o “fiel amigo” a um custo acessível às suas bolsas.
Nesse ano de 1916 em que ocorreu o facto que relatamos, a Parceria de Pescarias de Viana mandou os navios para os mares da Terra Nova.
O lugre “Santa Luzia” comandado pelo sr. capitão Manuel Marques Mano Agualusa, fez a viagem de Viana a Lisboa, onde foi abastecer de mantimentos e sal, no tempo recorde de 22 horas e 15 minutos, apesar de ter navegado longe da costa, por supor que os faróis se encontravam apagados por causa da guerra, perdendo caminho e tendo de esperar para entrar, com diz o capitão,“cheguei a Cascaes às 10,30 horas da manhã. Alli obrigaram-me a pairar até às 11 horas da manhã, que foi quando recebi o prático e depois de cumpridas as formalidades da actual situação (1), o navio seguiu para a barra”.
A manobra de entrada na barra de Lisboa à vela foi surpreendente e revela as qualidades náuticas do navio mas também de quem o comanda e manobra. O relato que faz o capitão Agualusa é disso esclarecedor, “À frente navegava um vapor, puxando (2) 10 milhas.
O vento refrescou mais no apertado da barra (3) e o navio apanhou tal seguimento, que foi preciso arrear alguns pannos para não ver o “Santa Luzia” saltar por cima do vapor.
No dia seguinte, na capitânia, o prático que pilotava o vapor, deu-me os parabéns pela boa marcha do nosso “Santa Luzia”.
E assim pode V. ver que os bons navios muitas vezes encobrem a falta de energia dos seus capitães...”
Os bacalhoeiros que partiram no início de Maio para os bancos começaram a regressar a partir de meados de Outubro como foi o caso de alguns navios da praça de Lisboa que aportaram a Viana do Castelo para descarregar o pescado para a secagem.
No dia 17 de Outubro de 1916 entraram em Viana o lugre (4) “Argus”, a escuna (5) “Creoula” e o patacho (6) “Neptuno”. Todos eles foram rebocados pelo vapor “Mosquito” propriedade do senhor João Magalhães. Mais uma vez aqui se regista a falta de um rebocador para auxílio das manobras e as dificuldades que os práticos dessa época tinham em manobrar os navios na entrada da eclusa do canal de acesso à doca.
Um dos navios que teve dificuldade em entrar, por ser o de maior boca (7), foi o patacho “Neptuno”. Quando entrava no canal da embocadura da doca, tocou no molhe sul e a unha do ancorote (8) ficou entalada entre o cais e o navio provocando neste um rombo junto à proa.
No cais do norte encontrava-se a ver a manobra o mestre calafate senhor António Gonçalves Pinto que notou que o navio estava a imergir (9) sem que de bordo alguém se apercebesse e, pressuroso, saltou para bordo do navio, descendo para o rancho (10) e procedendo a arrombamento de anteparas até chegar ao local do rombo com o intuito de o tapar.
Como um navio na situação de água aberta (11) constitui um perigo para a navegação em porto, o Capitão do Porto, responsável pela segurança, determinou que o navio seguisse para o Cabedelo a fim de ser encalhado numa coroa de areia.
O “Mosquito” que já se encontrava na amarração, teve de retroceder para rebocar o “Neptuno” para o Cabedelo, onde foi encalhado. Durante o trajecto e apesar das bombas de esgoto do navio terem trabalhado incessantemente para esgotar a água que jorrava pelo rombo, chegando a atingir “a altura de metro e tanto”.
Se não fora o pronto serviço efectuado pelo rebocador e calafate António Gonçalves Pinto, a que se deve associar a Corporação dos Pilotos e outros que intervieram na operação, o “Neptuno” teria submergido na doca ou no canal do rio, causando danos imprevistos à navegação, ao porto e à região.
Mas nem tudo foi mau nesse ano, a 24 de Outubro entrava a barra de Viana, proveniente dos bancos da Terra Nova, o lugre “Santa Maria” com um carregamento de bacalhau, consignado à Parceria de Pescarias de Viana.
Glossário:
(1) – Deve querer referir-se à guerra.
(2) – Puxar = Puchar fogo – significa nos navios a vapor aumentar o fornecimento de carvão à caldeira para dar mais velocidade.
(3) – Apertado da barra – Entre S. Julião da Barra e o Bugio.
(4) – Lugre – Navio à vela de mais de três mastros que enverga pano latino.
(5) – Escuna – Navio à vela de dois mastros com um mastaréu em cada um deles.
(6) – Patacho – Navio de dois mastros (traquete e grande) o traquete com pano redondo e o grande com vela latina e gave-tope.
(7) – Boca – largura máxima do navio.
(8) – Ancorote – Âncora pequena.
(9) – Imergir – afundar.
(10) - Rancho – local onde são servidas as refeições.
(11) - Água aberta – a meter água
Fontes : A Aurora do Lima: 18-02-1916; 09-05-1916; 20-10-1916; 24-10-1916
Viana do Castelo, 2010-04-21
Manuel de Oliveira Martins