Blog que retrata os acontecimentos do mar e porto de Viana e arredores, nos bons e maus momentos, dos pequenos aos grandes senhores.

22
Ago 10

 

A Guerra do Ultramar condicionou a vida de muitos jovens, especialmente aqueles que tinham idade para ir “às sortes”, como se dizia a respeito dos mancebos em idade de ir à tropa que tinham  à volta dos vinte anos.

Era um problema para todos e dum modo especial para os estudantes que viam os cursos interrompidos se, por  um precalço, “chumbassem”. Conheci alguns a quem isso sucedeu e que, regressados do Ultramar, não mais continuaram os estudos.

Para muitos estudantes, o Curso de Oficial da Marinha Mercante era uma fuga para a frente, pois permitia, não só tirar um curso, como evitar de “assentar tropa” e ser convocado para a Guerra do Ultramar.

A tropa dos alunos da Escola Náutica era feita em dois ciclos na Reserva Marítima. O 1.º Ciclo da Reserva Marítima realizava-se no final do 1.º ano curricular e desenrolava-se nas “férias grandes”, como então se dizia.

 

1 - Alcântara - Quartel de Marinheiros

 

O meu primeiro ciclo (e único) da R.M. ocorreu no Verão de 1968. Antes de “assentar praça” no Quartel de Marinheiros de Alcântara, tive de mandar fazer as fardas da “praxe”. Para o efeito, antes mesmo do final do ano escolar, recebi uma espécie de “autorização“  para poder adquirir na Cordoaria Nacional de Marinha os tecidos de sarja azul e branca para mandar fazer as fardas de serviço e de cerimónia exigidas por lei.

 

 

2 - Lisboa-R. da Junqueira - Antiga Cordoaria Nacional

 

O último período do ano escolar era bastante agitado. Para além dos exames anuais havia a preparação das fardas, as provas, a compra dos adereços, boinas, bivaques, sapatos, etc. No dia primeiro de Julho lá fui para Alcântara apresentar-me no quartel juntamente com os colegas daquele ano. Eramos cerca de cento e oitenta que foram divididos em dois grupos. Um grupo que iniciou a “recruta” a bordo do navio-escola “Santo André”, “ex-Sagres” e o outro que iniciou na Escola de Fuzileiros em Vale de Zebro e no qual fui integrado. Depois de um mês em cada uma destas unidades navais, os grupos trocavam de posições, terminando no final de Agosto o 1.º Ciclo de Incorporação Militar na Reserva Marítima.

Eramos incorporados na qualidade de Cadetes da Reserva Marítima e no final do ciclo regressávamos ao Quartel de Marinheiros de Alcântara – Base da Reserva Marítima – onde nos passavam à disponibilidade pelo período de um ano, findo o qual nos tínhamos de apresentar e requerer nova licença de disponibilidade por igual período durante 6 anos consecutivos. Ao fim de 6 anos de ogrigatoriedade de embarque em navios mercantes ou de pesca nacionais íamos então frequentar o 2.º ciclo da Reserva Marítima durante quatro meses na Base Naval do Alfeite na Escola de Limitação de Avarias. Não cheguei a frequentar este ciclo porque entretanto, e em resultado do 25 de Abril, houve alterações na lei que regulava a Reserva Marítima e fui licenciado como Aspirante da Reserva Marítima e mais tarde passei à Reserva como Subtenente da Reserva Marítima.

Esta faceta da minha vida contém aspectos tão marcantes e rocambolescos que ainda hoje, passados 42 anos, ainda estão presentes na minha memória e por isso entendo que os devo recordar.

Embarcamos em Alcântara num autocarro da Marinha com destino a Vale de Zebro, na margem direita do rio Coina que desagua no Mar da Palha junto ao Barreiro.

 

3 - Vale de Zebro - Entrada do Quartel de Fuzileiros

 

Depois de despejarmos as malas nos antigos alojamentos dos oficiais, um edifício situado no fim da parada com vista para o rio, a ordem era para formar em frente às instalações, ainda civilmente vestidos, onde nos foram transmitidas as primeiras instruções.

Foi difícil ao oficial encarregado da formatura posicionar  os noventa reservistas ”rebeldes” e pouco motivados para em pleno Verão e especialmente em férias, formarem no calor abrasador da parada de Vale de Zebro.

O primeiro dia foi de adaptação e o pessoal, habituado ainda à vida civil julgava que estava no Bairro Alto ou no Cais do Sodré e não se controlou. Desde a jogatina da “Lepra”, às partidas nas camaratas - qual delas a mais hilariante, até à ida para a beira do rio dormir por causa do calor insuportável nas casernas com os cobertores pela cabeça, autênticos “serandeiros” , tudo valeu para despertar a vigilância de um quartel militar. A patrulha de serviço apresentou-se e mandou formar os “senhores cadetes” na parada, já passava da meia noite para pedir explicações, apurar culpados e impor  castigos. Valeu a prestimosa ajuda de um nosso colega, sobrinho do Ministro da Marinha, que telefonou ao tio para interceder junto do Comando do quartel.

O castigo não era exagerado, um fim de semana cortado, não prejudica muito, contudo, os que eram naturais de Lisboa e arredores não viam com bons olhos a perda dessa regalia depois de passarem uma semana no “degredo” como alguns irónicamente apelidavam o 1.º ciclo da R.M.

O castigo foi levantado, mas o comando não gostou da intervenção, como transpareceu durante a nossa estadia naquela unidade, através da forma rigorosa como a recruta foi ministrada, parecendo que se tratava de treino de preparação para combate como o que era ministrado aos fuzileiros navais. Neste aspecto nada podíamos obstar, embora alguns opinassem que devíamos manifestarmo-nos contra, outros, mais conscienciosos e ponderados demoviam o grupo de tomarem tal posição que podia tornar-se prejudicial.

Não nos podíamos esquecer que estavamos num quartel e num regime que não privilegiava esse tipo de reacção e se a maioria estava ali para não ir “bater com os costados” na guerra, não fazia sentido estarmos a contestar  a instrução, porque podia ser pior a “emenda que o soneto” e irmos parar à frente de guerra onde se falava havia necessidade de efectivos, especialmente “fuzas”, como era o nosso caso.

 

4 - Vale de Zebro - Pista de lodo

 

O segundo dia foi marcado por um “cross” de cinco quilómetros em passo acelerado, comandado pelo instrutor, em terreno arenoso com obstáculos imprevistos que arrasou a maioria dos “senhores cadetes”, como irónicamente os instrutores nos chamavam. Daí para a frente as dificuldades foram crescendo, a “aldeia dos macacos”, a pista de lodo, o “Slide” com queda no lodo, etc. De bom só a piscina onde os cadetes da Reserva Marítima foram de facto “Senhores” e brilharam em todas as provas, conquistando quase todas as medalhas que havia em disputa, ou não estivessem entre eles alguns dos melhores nadadores do Algés e Dafundo, caso do Casaca, Ribas, Dantas e outros que não me lembro.

Nem tudo era mau naquele cenário pró-guerra. A Marinha sempre se ufanou de tratar bem o pessoal. Em termos alimentares pecava por excesso, pese embora alguns mesmo assim contestarem. Todos sabemos que num rebanho existe sempre uma ovelha ranhosa que habituada normalmente ao mau pasto, não sabe distinguir o que é bom do mau e está sempre a berregar.

 

5 - Vale de Zebro - Piscinas

 

Cabe aqui agora contar a cena verídica do saudoso colega e amigo Viana Cabral que demonstra sobejamente a fartura de comida que abundava em todas as refeições sem restrições.

O bom amigo Viana Cabral era mesmo uma boa alma (para além de muitos e importantes cargos que ocupou, foi Presidente da Amnistia Internacional em Portugal), mas pecava pela gula, coitado. A sua forma avantajada a isso o obrigava e ao pequeno almoço comia seis carcaças e bebia dois litros de água, tendo-lhe ficado o epíteto  de “Seis carcaças”, mas um outro colega teve o atrevimento de ao lanche comer sete pêssegos de calibre bem avantajado, trazia-os à cintura por dentro da camisa, mais parecendo um papo de gordura.

As aulas teóricas eram à tarde e a maior parte não resistia à sonolência provocada pelo efeito da digestão e começava a “pesar bacalhau” como é costume dizer-se, perante as teorias pouco atractivas da matéria e das tácticas militares. Salvavam-se as aulas de mecânica de armamento que obrigava a mexer o corpo, principalmente as mãos.

 

6 - Um grupo de cadetes em Vale de Zebro

 

Tinha passado um mês, Vale de Zebro ficava para trás, sem deixar saudades. O próximo poiso era a bordo do navio-escola “Santo André” que se encontrava atracado na Base Naval do Alfeite. A segunda parte deste ciclo de preparação militar era mais atractiva para a malta. Íamos estar em contacto com o mar através não só do navio que ía servir de base e alojamento, como também de treino de remo e vela a bordo das embarcações miúdas no Mar da Palha e de aulas teóricas relacionadas com a prática, o que à partida constituía um estímulo aliciante. Já as aulas de ginástica e a subida aos mastros do “Santo André” não entusiasmava a maioria que invocava vertigens para não subir mais que meia enxárcia do mastro, não se aventurando sequer até à mesa e muito menos subir ao mastaréu.

 

7 - Um grupo de cadetes a bordo do Navio-escola "Santo André", no Alfeite em 1968

 

Fomos recebidos pelo oficial imediato do navio, um 1.º tenente da classe de Marinha, sem peneiras nem presunção, que nos pôs à vontade, o que é invulgar. Apresentou-nos o dispenseiro que se mostrou cordial e afável pronto a tornar a nossa estadia o mais agradável possível em termos gastronómicos, mostrando-se receptivo a fazer outra ementa para os que não gostassem dum determinado prato, desde que não fossem em número exagerado.

Por ironia que pareça, logo no primeiro dia de estadia, um grupo de colegas cismou de incutir nos outros para fazer “levantamento de rancho” por que o prato de peixe que o dispenseiro apresentou não estava bom nem era digno de se apresentar tal qualidade de peixe. A maioria de nós ainda nem tinha conseguido descer as escadas de acesso aos refeitórios e muito menos sentar-se à mesa e sequer provar o peixe que era cavala com feijão verde e batatas. Antes porém havia sopa que a maioria rejeitava e entradas de azeitonas, manteiga, fiambre, queijo etc. e posteriormente o prato de carne que naquele dia era formado por bife com ovo, fiambre, arroz e batatas fritas. A terminar, a sobremesa, constituída por um doce e fruta acompanhada quase sempre de queijo e marmelada.

À maioria de nós pareceu-nos que se tratava de uma minoria que pretendia criar conflitos e que préviamente tinha visto a ementa que era colocada logo de manhã quando o dispenseiro chegava da praça com as compras.

 

8 - Cadetes a bordo de um "Zebro" em terra no quartel dos fuzileiros

 

O dispenseiro ficou profundamente amesquinhado perante aquele grupo que nem sequer pediu substituição e resolveu levar o prato a provar ao imediato que verificou que a comida estava boa e não havia razão para reclamar comida estragada.

Nestes casos paga o justo pelo pecador e lá fomos todos  a meio da refeição formar no convés, para saber quem foram os que reclamaram a comida. O imediato, na presença do dispenseiro, mandou dar um passo atrás aqueles que acharam que o prato de peixe estava estragado. Aos infractores, que estavam na presença do dispenseiro a quem tinham ido reclamar, não restava outra alternativa senão identificar-se, tendo aguentado com o acto impensado que cometeram, comprometendo os outros colegas.

Admito que não gostassem de cavala cozida, mas deviam educadamente pedir uma alternativa, como de facto lhe foi servida em substituição da cavala, pescada frita a cerca de vinte, mas o que não podiam nem deviam ter feito era tentar fazer um “levantamento de rancho” através duma suposição falsa. Ist.o de gostos é relativo, para mim gosto mais de cavala do que pescada e ninguém tem o direito de tomar posições de gosto ou outras pelos outros.

 

9 - A bordo do "Santo André",atracado no Alfeite

 

A atitude do Imediato em mandar dar um passo atrás, sensibilizou-me e se desde a apresentação ficara com boa impressão dele, mais ainda fiquei depois desta demonstração de anonimato dos colegas. Durante um mês convivemos todos em harmonia, não mais havendo qualquer confusão por que  dois homens bons, o Imediato e o dispenseiro deram o exemplo amenizando a situação sem penalizar ou etiquetar alguém.

Todos ansiávamos pelo fim de Agosto na expectativa de ainda irmos gozar os poucos dias de férias que nos separavam do início de novo ano escolar. A despedida oficial foi na Base Naval do Alfeite no edifício do Estado Maior da Armada. O dia estava chuvoso, valeu-nos o transporte até Alcântara, mas à hora a que chegamos, na saída dos empregos e o imprevisto da chuva diluviana de Verão que se abateu sobre Lisboa, criou uma instabilidade de tal ordem no trânsito que não consegui apanhar um táxi livre em mais de duas horas  que estive de plantão na Praça da Armada, de mala na mão, vestido de farda branca, com a água a escorrer pelas costas abaixo até aos pés que ficaram alagados.

Como um mal não vem só, quando cheguei à rua onde morava e deitei a mão ao bolso para pagar o táxi não tinha dinheiro e tive de o mandar esperar, enquanto fui pedir à senhora que me alugava o quarto, um empréstimo para pagar ao táxista.

 

Fotografias:

 

1;2; - Do arquivo do autor

3; - Rocha, Manuel in www.panoramio.com/photo/1951618

4; - Freitas, Amândio in www.panoramio.com/photo/1951618

5; - Cardoso, Palhas, Ti in www.panoramio.com/photo/1951618

6;7;8;9; - Do arquivo do autor

 

Viana do Castelo 2010-08-22

Manuel de Oliveira Martins

publicado por dolphin às 17:10

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