Blog que retrata os acontecimentos do mar e porto de Viana e arredores, nos bons e maus momentos, dos pequenos aos grandes senhores.

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Jun 14

ONDE ESTAVA NO 25 DE ABRIL? (I)

 

Esta pergunta ficou célebre através de um conhecido jornalista e escritor e tem sido mencionada por outras fontes, nomeadamente o JN durante o mês de abril, em entrevistas feitas a personagens conhecidas da vida pública portuguesa.

Hoje, faz 40 anos que se deu o 25 de abril e é exultante para mim relembrar esse momento e os que se seguiram. Quis o destino que naquele ano de 1974 em que decidira fazer uma pausa na minha vida de homem do mar, para me casar, tal não viesse a suceder, e não resisti a uma oferta bastante aliciante monetariamente, de fazer uma viagem num navio da pesca à linha.

A pesca à linha estava no fim. Só restavam 3 navios da famosa frota branca que ainda persistiam naquele tipo de pesca, há muito abandonado por outros países, com frotas pesqueiras do bacalhau. Eram eles o Ilhavense, o São Jorge e o Novos Mares. Dos três somente o Novos Mares regressaria a Portugal, os outros dois por lá ficaram, vítimas de incêndio em circunstâncias diferentes.

O São Jorge, navio onde eu desempenhava as funções de imediato, saiu de Lisboa no dia 22 de abril, depois dos preparativos usuais para a viagem de 5 meses - regulação de agulhas, calibração do radiogoniómetro, abastecimento de sal, mantimentos e aprestos, etc. – com destino aos bancos da Terra Nova.

O São Jorge navegava no canal com o mesmo nome, entre as ilhas açorianas do grupo central, de São Jorge, do Pico e Faial, quando o capitão do navio deu a boa nova de uma revolução, há muito desejada.

A maior parte do pessoal em que me incluía, estava no convés do navio, atarefado nos preparativos para a faina que se avizinhava dentro de dias, preparando os dóris, adaptando-os cada um ao seu modo, dando-lhe um nome, preparando os motores fora de borda que tinham trazido dos botes que utilizavam na pesca nos portos de onde eram oriundos. Noutros tempos mais difíceis, eram as velas que preparavam, agora era tudo a motor. Alguns não tinham motor próprio e o navio fornecia-lhe.

Foi uma algazarra imensa, uma euforia desmedida, um viva Portugal, abaixo a ditadura! O capitão manifestou igualmente a sua satisfação e deu ordem ao cozinheiro para daí em diante passar o comer a ser igual para todos, isto é, dois pratos.

Durante o período da ditadura, o pessoal de ré (os oficiais) tinham direito a comer, sopa, prato de peixe, prato de carne e sobremesa, enquanto o pessoal da prôa (mestrança e marinhagem) comiam sopa e um prato de peixe ou de carne alternadamente ao almoço e/ou ao jantar e sobremesa só à quinta e domingo, consoante os navios, nalguns era só ao domingo.

A ordem teria sido boa se previamente o capitão se tivesse informado com o cozinheiro da possibilidade de poder fornecer esta duplicação de refeições, quer em géneros quer em trabalho para o pessoal da cozinha. Foi uma medida precipitada que criou um precedente jamais sanado e que mais tarde o capitão veio a reconhecer que foi um erro, fruto da sua euforia e da vontade que sempre tivera em que a comida fosse igual para todos em especial para aqueles que mais se desgastavam fisicamente – os pescadores.

O capitão, para nos manter informados enquanto se trabalhava no convés, ligou o rádio ao altifalante que dava para a prôa para ouvirmos as notícias intercaladas com música de intervenção, comentando de vez em quando os acontecimentos. Assim passamos o canal de São Jorge e rumamos a St. John´s da Terra Nova, contrariamente ao que estava destinado antes que era ir diretamente para a pesca no Banquereau ou Saint Pierre. As medidas precipitadas assim o obrigavam, era necessário meter mais mantimentos e mais um ajudante de cozinha, porque as refeições quadruplicaram.

Naquele dia à noite o capitão teve uma surpresa quando estava à mesa a jantar. O cozinheiro veio informar que o pessoal da prôa tinha rejeitado o prato de peixe, constituído por pescada cozida com batatas e hortaliça, dizendo que aquilo não era comida que se desse a um homem. Ficaram acalmados por que o prato de carne era bife com batatas fritas, mas que alguns estavam a reclamar uma segunda dose quando ele só tinha contado com um bife para cada um. O capitão pediu-lhe que tentasse resolver o problema da melhor forma possível, indo o cozinheiro para a prôa apreensivo, sem saber como iria dar a volta à situação, pois por aquele andar não tinha sequer mantimentos para chegar a St. John’s.

Um dia depois de passarmos os Açores, na noite de 26 para 27, estava de serviço de navegação na ponte, o vigia veio-me informar que à proa estava tudo bêbado, tinham rebentado com o cadeado do paiol dos mantimentos, feito «Champarrion», cortado os presuntos e andavam à pancada uns contra os outros, ninguém se entendia. Chamei o capitão e dei-lhe conhecimento do panorama que o vigia me tinha descrito. Como responsável pela disciplina coube-me a tarefa de ir à prôa analisar a situação e tentar apaziguar os ânimos. Escusado será dizer que a situação era caótica e insustentável, sem controle possível. Dirigi-me à ponte informar o capitão do barril de pólvora que estava rastilhado. Foi a vez do capitão tentar ir impor a sua autoridade, como responsável máximo do navio.

Eu era um jovem imediato de 26 anos, o capitão era um veterano com mais de 50 anos, esperava-se que obedecessem às ordens dele, ainda para mais que ele tinha demonstrado ser um camarada quando tomou a decisão da comida passar a ser dois pratos, igual para todos. Chamaram-lhe de tudo, só faltou baterem-lhe! Veio muito perturbado, chorou, disse que não merecia o que ouviu, principalmente de alguns que nunca imaginara pudessem maltratá-lo, pelo muito que tinha feito por eles. Tentei acalmá-lo e fui deitá-lo.

Continuei no meu posto de navegação, enquanto o navio singrava as águas frias do oceano naquela noite escura a caminho da Terra Nova e meditava naquilo que se tinha passado e transpondo para o país imaginava cenários idênticos, como mais tarde vim a saber aconteceram.

Não era isto que eu queria para o meu país, quando antes lutava pela liberdade contra a opressão e o obscurantismo. Esperava liberdade dentro dum cenário de ordem e respeito de uns para com os outros dentro do seu estatuto e função. Não era isso que estava a acontecer e que se iria passar no futuro como terei oportunidade de contar noutra ocasião.(Continua)

 

Publicado no jornal «A Aurora do Lima» em 15/05/2014

 

Viana do Castelo, 25 de abril de 2014

Manuel de Oliveira Martins

maolmar@gmail.com

 

 

 

 

 

 

publicado por dolphin às 18:06

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