ONDE ESTAVA NO 25 DE ABRIL (4)
Não havia acordo possível, os pescadores só queriam regressar para participar nas mudanças pós 25 de Abril, que supunham ser de grandes benefícios para a sua classe.
Um dia chegou a notícia do regresso a Aveiro dos dois navios da pesca à linha, o Novos Mares e o São Jorge, onde eu exercia as funções de Imediato. Dum modo geral todos regozijamos com a notícia em especial os que reivindicavam incessantemente essa tomada de decisão – os pescadores.
Não manifestei exteriormente essa alegria, mas no fundo eu era o que tinha mais razões para estar contente. Eu tinha feito um contrato fixo para a viagem de 5 meses e com a vinda mais cedo (metade do tempo) iria receber pela totalidade. Foi o melhor vencimento mensal em toda a minha vida.
Largamos de St. Jonh’s ao meio dia rumo a Aveiro, contentes por podermos encontrar os familiares e passar o verão, o que não era habitual nesta vida da pesca do bacalhau, especialmente na pesca à linha e na pesca com redes de emalhar que aproveitavam as boas condições do verão para efetuarem as campanhas. Já na pesca do arrasto, às vezes, dava para passar uns dias de verão durante a estadia entre a viagem de verão e de inverno.
Eram cerca das 18.00 horas quando o moço da copa veio chamar para a 1.ª mesa do jantar. O 2.º maquinista mandou avisar que viria mais tarde devido a uma avaria na casa da máquina. Comemos a sopa e quando nos preparávamos para o prato de peixe, o ajudante de serviço à casa da máquina veio avisar o capitão que havia fogo na casa da máquina. O capitão foi a correr para a casa da máquina enquanto eu fui para a ponte do navio enviar um SOS a pedir socorro, contactando imediatamente por VHF[1] com o navio «Novos Mares» que seguia a cerca de 2 milhas por nosso estibordo[2]. Olhei para esse lado mas não avistei o navio porque uma neblina difusa não permitia visualizá-lo aquela distância.
O mar apresentava-se cavado[3] tínhamos passado por dois icebergs em decomposição horas antes e a temperatura da água era cerca de dois graus.
O maquinista que se encontrava de serviço teve o bom senso de parar a máquina e o navio ficou parado, atravessado ao mar, balouçando ao sabor das ondas, uma situação muito difícil para se efetuar o salvamento.
O sucesso de uma operação de salvamento é haver ordem e não entrar em pânico. Foi uma sorte o que aconteceu naquele dia naqueles mares gelados e escuros. Os pescadores em vez de se dirigirem aos seus postos de salvamento obrigatoriamente atribuídos, começaram de arriar os botes que não resistiam naquelas condições adversas, em vez de se dirigirem para os seus postos e colaborarem nas tarefas distribuídas a cada um.
O meu lado era o de estibordo e com o contramestre fui atirando para a água e abrindo as jangadas salva vidas, enquanto os pescadores, que não se conseguiam aguentar nos dóris, faziam o transbordo para as jangadas de pessoas e haveres que pretendiam salvar.
Depois de ter aberto todas as jangadas do meu bordo, estava exausto e apesar do esforço, sentia um frio enorme devido às temperaturas baixas (cerca de 7º) agravado por estar em mangas de camisa. Tentei entrar no meu camarote para apanhar um agasalho mais quente, mas, no momento em que abri a porta, as labaredas emergiram do interior e fechei imediatamente a porta e coloquei-me por fora do varandim à popa, para tentar saltar para a única jangada que ainda estava presa ao navio daquele lado. Um tripulante da jangada estava com uma navalha na mão para cortar a boça[4] que prendia a jangada ao navio. De cima do navio onde me encontrava gritei-lhe para não o fazer senão lhe mandava com um ferro à cabeça, dissuadindo da intenção. Ao fim de várias tentativas para saltar para a jangada e não cair à água gelada, já cansado decidi atirar-me na esperança de cair em cima da jangada que ora se afastava ora se aproximava do navio conforme o balanço.
Atirei-me duma altura de cerca de 6 a 7 metros e por sorte caí dentro da jangada, mas bati com a perna direita em algo duro que me deu a sensação de ter partido a perna. Era uma caixa de madeira que um pescador se lembrou de levar para a jangada contra todas as recomendações. Aquela dor foi horrível. Parecia que tinha partido a perna. Passado algum tempo a dor abrandou e apalpei a perna sentindo o sangue escorrer da canela que felizmente não estava partida. A minha preocupação voltou-se instantaneamente para a proximidade do navio e dei ordens para com os pequenos remos de que dispunha a jangada e com as mãos nos afastarmos do navio para não sermos sugados pela corrente de redemoinho quando o navio se afundasse. Conseguimos afastarmo-nos uns bons metros, o suficiente para não sermos arrastados e vermos o crepitar do navio a arder em chamas que iluminava as jangadas que ainda se encontravam nas proximidades do navio e não consegui divisar mais que duas na auréola das chamas do navio.
As labaredas eram enormes, negras e cinzentas, o fumo denso e matizado de cores ocre, o mar estava coalhado de botes vazios uns outros voltados, à deriva. Uma explosão seguida de outra quase imediata ecoou no silêncio sepulcral daquela noite fria e tenebrosa. O navio abriu pela popa projetando labaredas e tábuas incendiadas que caíam na água provocando um ruído aterrador. Em poucos minutos o navio ergueu a proa para o céu como que a pedir misericórdia e afundou-se num ápice. À nossa volta ficou tudo escuro como breu, só o marulhar das ondas por companhia.
A bordo da jangada o cheiro era nauseabundo. Um cheiro a vomitado impestava o ambiente. Um energúmeno, em pé, no meio da jangada, de navalha aberta, apregoava que já tinha sido náufrago do Brites[5]. Ordenei-lhe que fechasse a navalha para não por em perigo a vida de todos quantos estavam ali. Se ele caísse e furasse a jangada íamos todos para o fundo. Basofiando não acatou a ordem e, combalido ainda da pancada e meio enjoado pelo balanço próprio de um meio elástico ao qual não estava habituado, ainda arranjei energias para lhe desferir um murro que o atordoou e pôs a dormir para não nos incomodar por algum tempo.
Era necessário tomar alguma mediada, na expetativa de alguém vir em nosso auxílio. Alimentava a esperança do navio Novos Mares vir em nosso auxílio e providenciei no sentido de estarmos vigilantes e estabeleci um sistema de vigias pela abertura da jangada, atentos a qualquer barulho de motor que pudesse aproximar-se de nós.(Continua)
Publicado no jornal «A Aurora do Lima», em 10 de julho de 2014
Viana do Castelo, 2014-05-03
Manuel de Oliveira Martins
maolmar@gmail.com
[1] VHF – Very High Frequence – aparelho de comunicação de ondas de alta frequência usado nas comunicações a curta distância.
[2] Estibordo – lado do navio que fica à direita quando estamos virados para a proa.
[3] Mar cavado – Mar com profundos espaços entre as vagas, cerca de 4 a 5 metros.
[4] Boça – cabo fino destinado a amarrar as embarcações miúdas.
[5] Brites . Lugre de 4 mastros que naufragou nos bancos da Terra Nova