ONDE ESTAVA NO 25 DE ABRIL (3)
Atracamos no cais do Norte, frente à Water Street, mesmo no centro da baixa da cidade de St. John’s, a uma centena de metros da Fundação George V, onde estava sedeada a Casa dos Pescadores, na época dirigida por um vianense, o senhor Ângelo Silva, de saudosa memória.
Quando chegamos, já se encontrava atracado ao cais o Capitão Ferreira, um navio da pesca à linha que havia sido transformado em navio de redes de emalhar. Tinha arribado a St. John’s com uma revolta do pessoal que se negava a trabalhar por que o navio tinha fantasmas. O Imediato era do meu curso e contou-me os motivos. Da primeira vez um homem ficou esmagado entre a lancha e o turco de suspensão, invocando alguns que a culpa era do imediato que comandava as operações de içar as lanchas. O facto é que quem estava aos comandos do guincho era um motorista e mesmo ele não podia ser responsabilizado pois tratou-se de uma falha mecânica, como veio a ser apurado. A segunda morte ocorreu numa noite de S. João depois de terem festejado a efeméride abundantemente com bebida como é apanágio do pessoal do mar, para esquecer as mágoas. O infeliz pescador durante a noite, ensonado e atormentado ainda pela bebida veio à borda urinar, em vez de ir ao quarto de banho e caiu ao mar, ninguém deu pela queda, só pela manhã notaram a sua falta.
Depois de reunirem no rancho, um grupo foi à ponte comunicar ao capitão que não trabalhavam mais e pretendiam que o navio arribasse a St. John’s e fossem repatriados de avião por causa dos fantasmas; nem admitiam sequer regressar a Portugal no navio por causa dos ditos seres fantasmagóricos que habitavam o navio.
O encontro das tripulações dos navios «salvadores» com a do «navio fantasma» enquistou a saída para o mar e os pescadores da linha associaram-se aos colegas das redes de emalhar reivindicando o regresso a Portugal, não pela via aérea como os do Capitão Ferreira, mas nos próprios navios onde tinham os motores e os haveres que lhe eram caros.
Neste impasse se mantiveram e, os navios das redes de emalhar, à medida que iam chegando a St. John’s, aderiam à reivindicação dos outros, até que se juntaram tripulações de 7 ou 8 navios, cerca de 600 homens. As agências consignatárias dos navios não tinham autorização para fornecer dinheiro às tripulações por ordem de Lisboa, que tinha congelado a saída de divisas. Sob a ameaça dos tripulantes que insinuavam assaltar casas comerciais na Water Street, caso não lhes fosse fornecido dinheiro, a polícia montada do Canadá implantou um dispositivo de segurança junto dos navios com cães amestrados, controlando as saídas para terra de toda a gente.
Uma comitiva da Junta de Salvação Nacional, entretanto constituída, deslocou-se a St. John´s para tentar apaziguar os ânimos e resolver a ida dos navios para a pesca. Depois de duas reuniões no auditório da Casa dos Pescadores, onde foram maltratados e enxovalhados e até tomates e ovos foram arremessados, regressou a Lisboa sem nada ter conseguido.
Os armadores, por seu lado, que estavam a sofrer na pele esta paragem, pois tinham feito avultados investimentos nos navios para a campanha, também se deslocaram à Terra Nova para chegarem a um acordo e minimizarem os prejuízos da viagem. Há cerca de um mês que estavam os navios parados, sem meterem um peixe no porão.
Era junho, altura em que a cidade de St. John´s se torna mais atraente com a verdura dos jardins, públicos e particulares, convidando ao lazer nos parques da cidade durante o dia e, nas noites amenas, uma ida aos bares beber um copo e divertir um pouco.
Eu e todos os outros íamos desfrutando o bom tempo que fazia sem as agruras da pesca, mas era tudo ilusório e eu tinha consciência disso. Muitas vezes, em conversa com alguns pescadores, mais ponderados e menos emotivos, tentava persuadi-los do logro em que tinham caído e chamá-los para a realidade, sem resultados.
Os navios das redes de emalhar partiram para a faina ficando amarrados ao cais os últimos bacalhoeiros da pesca à linha e o «navio fantasma». Nada os fazia demover do regresso a Portugal.
Publicado no jornal «A Aurora do Lima» em 19/06/2014
Viana do Castelo, 2014-05-02
Manuel de Oliveira Martins
maolmar@gmail.com