Blog que retrata os acontecimentos do mar e porto de Viana e arredores, nos bons e maus momentos, dos pequenos aos grandes senhores.

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Out 07

 

in"Revista de Marinha"

Fotos de Luis Miguel Correia

publicado por dolphin às 18:57
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Out 07

 

in "Revista de Marinha"

Fotos de Luis Miguel Correia

publicado por dolphin às 23:11
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25
Set 07

Embora já tivesse estado em Moçâmedes por duas vezes, uma em 1969 e outra em 1970, não conhecia o Libório, figura bem conhecida de todos, especialmente do pessoal do mar.

O Libório é aquela pessoa simples e humilde que cativa e depressa se encaixa em qualquer ambiente, procurando ser prestável e pronto a colaborar. É amigo de verdade. Ao longo da minha vida de mar contam-se pelos dedos duma mão os amigos verdadeiros que conheci e em quem pude confiar, o Libório está nesse punhado de gente boa e amiga.

 

 

Moçâmedes vista do Porto Comercial

 

Quando cheguei a Moçâmedes pela terceira vez, aí por meados de Junho de 1971,como oficial-imediato do Arrastão de pesca "Tropical", da Sociedade de Pesca Miradouro, S.A., depois de atracarmos, o amigo Libório veio apresentar-se como mestre da lancha dos pilotos da barra, pondo-se à disposição para colaborar naquilo que estivesse ao seu alcance.

Como curiosidade, depois de se auto elogiar, defeito de somenos importância, comparado com as qualidades altruístas que possuía, apresentou uma cedula marítima passada pelo consulado do Panamá em Luanda, como Capitão da Marinha Mercante daquele país da América Central.

Durante os quase três anos que passei nos mares da zona do Sudoeste Africano, com vindas periódicas a Moçâmedes, normalmente de quinze em quinze dias, para descarga e abastecimento, à chegada tinha sempre o amigo Libório que como mestre da lancha dos pilotos, vinha  trazer o piloto a bordo e passar cabos a terra. 

Nem sempre  o amigo Rente, piloto da barra, vinha fazer a manobra de atracar/desatracar, autorizando-nos a entrar /sair sem a presença dele a bordo. Muitas vezes encontrava-se a manobrar um mineraleiro de 150.000 toneladas no porto do Saco, na extremidade Norte da Baía de Moçâmedes, manobra demorada e remetia para nós a decisão de atracarmos à nossa responsabilidade, indicando-nos o local de atracação, ou então esperar que terminasse a manobra e regressasse ao cais comercial, o que na maioria dos casos implicava uma espera prolongada.

O Libório, como mestre da lancha, enquanto esperava a hora de ir desembarcar/embarcar o Rente, do navio que procedia/demandava o Saco, passava/largava os cabos a/de terra, facilitando-nos a manobra, especialmente quando tinhamos que atracar em espaços apertados, outras vezes não podia e tinhamos que fazer a aterragem com maior precaução para não provocar avarias, que não só originavam participações a regularizar na Capitânia, como também implicavam perda de tempo em reparações, custos e prejuízos, prejudiciais à nossa actividade da pesca.

O Porto Comercial situado no extremo sul da baía, distava da cidade uns bons dois quilómetros, numa estrada agreste, despida de vegetação, sob o sol inclemente. O amigo Libório estava sempre disponível para nos transportar até à cidade. Fazia várias viagens de ida e volta para instalar nas esplanadas e bares os tripulantes do navio.

 

 

Praia das Miragens

 

Recebia como retribuição a amizade e respeito de todos nós que lhe enchiamos o carro de bens essenciais, que ele rejeitava, mas que acabava por aceitar, porque o vencimento não era muito e um garrafão de vinho da Metrópole bebia-se bem e umas batatas, umas pescadas e às vezes umas bocas de caranguejo, davam sempre jeito lá em casa. 

Em Moçâmedes juntavam-se por vezes vários navios de pesca à descarga ou a aguardar vez. Este ajuntamento era motivo para entre a oficialidade organizar-se uma festa. O meu amigo Comandante Manuel Marques Damas, "Almirante" do navio ALTAIR da Companhia Portuguesa de Pesca, era o anfitrião nº 1 dessas festas famosas a bordo do seu navio.

Primava no receber, no saber fazer e estar, por isso o Altair era o navio "Almirante " da frota de arrasto nos mares do Sudoeste Africano.

Numa dessas estadias, coube ao navio Tropical, do comando do Capitão Rui Sousa, realizar essa festa do oficialato e companhia(...). Para quebrar a monotonia da vida a bordo,e animar a festa, convidavam-se uns amigos e amigas que normalmente retribuíam com convites para suas casas e nos visitavamos sempre que estavamos em terra. O amigo Libório também se encontrava presente ou ele não fosse Capitão da Marinha Mercante do Panamá.

Nem de perto nem de longe se podia comparar a festa do Tropical com as do Altair, até porque as condições logísticas dos navios são muito diferentes. Apesar dessas restrições, improvisou-se um jantar volante na ponte do navio, onde havia mais espaço e se podia circular mais à vontade e respirar o ar da baía.

 

 

N/m Tropical

 

A festa estava animada com música e dança à mistura, a dada altura, já estavamos nas sobremesas, o Libório que estava a comer um pastel de côco, fica muito aflito, "asfixiado" com o pastel na boca, corre para a asa da ponte, tenta tirar o pastel que estava colado no céu da boca  e deita  o pastel ao mar. Acto contínuo exclama: - Ai a minha placa, lá foi a minha rica placa!

Ficamos boquiabertos, olhando uns para os outros, interrogativamente. Desconhecíamos que o Libório usasse placa dentária. O pobre do homem estava inconsolável, deitava as mãos à cabeça, entrava e saía da ponte, indo para a borda e olhando para a água.

Como é que eu vou fazer agora, que vai ser de mim sem placa? - Tentamos dar-lhe ânimo, que não era o fim do mundo. Foi então que ele, depois de estar mais calmo, nos confidenciou que tinha estado dois meses em Luanda para tirar os dentes podres e colocar esta placa que agora jazia algures no fundo da baía de Moçâmedes.

Compreendemos perfeitamente a preocupação e estado de choque em que ficou o nosso amigo e, sem dizermos nada uns aos outros, pensamos em pagar-lhe a prótese dentária, como, mais tarde, revivendo e rindo-nos com o episódio, desabafamos as nossas intenções.

Escusado será dizer que a festa terminou ali, alguns ainda foram até ao bar Americano esquecer as mágoas num trago de Whisky, enquanto outros preferiram acabar a noite na solidão do camarote, ouvindo música, lendo um livro, pensando na família que deixaram lá longe na Metrópole.

 

 

Em Moçâmedes

 

No dia seguinte, quando acordei, antes de tomar o pequeno almoço, prescrutando um barulho estranho fui indagar e, para meu espanto, deparei com o Libório debruçado na borda falsa, por vante do casario da ponte e, dando-lhe uma palmada nas costas, que o fez estremecer de susto, perguntei:

- Que se passa Libório, que fazes aqui tão cedo?

- Anda um mergulhador meu amigo lá em baixo - o Libório tinha amigos em todo o lado - a tentar encontrar a placa.

- Era bom que encontrasse amigo, estamos todos a torcer para que isso aconteça.

Em boa verdade não acreditava muito, até porque a água estava muito turva, mas havia que dar força ao amigo que estava em sofrimento, mas que tinha fé do mergulhador encontrar a prótese.

Ao fim de mais de quatro horas de mergulho sem que o Libório arredasse da posição de bruços no varandim do navio, o mergulhador apareceu à superfície exibindo numa das mãos a arcada dos dentes postiços do Libório. Este começou de pular e gritar numa alegria louca.

-Saiu-me a sorte grande! Enquanto me abraçava esfusiantemente numa alegria indescritível.

Queria fazer uma festa, pagar bebidas a todos, não cabia em si de contente, tanta felicidade transparecia no seu rosto.

Passados uns tempos depois do rocambulesco episódio, em conversa com ele, em tom de brincadeira perguntavamos-lhe, se tinha lavado bem a prótese, porque ela tinha sido encontrada na direcção do esgoto do navio e também do esgoto da cidade.

O Libório ria-se à farta das nossas insinuações maliciosas, mas creio que lá no fundo, pensava:

- Gozem, gozem que enquanto voçês gozam eu vou-me rindo!

E ria perdidamente com aquele ar de felicidade estampado no rosto tisnado do sol do deserto e da maresia da baía, mostrando a dentadura branca recuperada.

Passaram-se os anos, muitos, um dia venho encontrar o Libório na Escola Náutica Infante D. Henrique em Paço d'Arcos. A vida dá muitas voltas, o Libório regressou de África após a descolonização e veio encontrar refúgio e trabalho como jardineiro da escola, sempre com o mesmo sorriso de bondade num rosto mais envelhecido pelos anos e amarguras da vida, mas sempre bem disposto e brincalhão.

 

 

 

 

publicado por dolphin às 18:10
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16
Set 07
Moçâmedes 1972. Era na altura o Imediato do arrastão de pesca "TROPICAL" da praça de Aveiro, propriedade da Sociedade de Pesca Miradouro, SA. que operava nos mares do Sudoeste Africano.
Moçâmedes era o porto base onde efectuavamos os abastecimentos e descargas do pescado para os frigoríficos da ARAN (Associação dos Armadores da Pesca de Angola).

 
Em Moçâmedes
A pesca efectuava-se para sul do paralelo 18' 00" S em fundos arenosos onde abundava a pescada (marmota) em grandes quantidades. O tamanho da marmota era por vezes de baixo calibre o que motivava o desperdício de grandes quantidades que eram deitadas novamente ao mar, para gáudio dos leões marinhos que abundavam nessa zona.
Por vezes acontecia quando da manobra de virar a rede, um ou mais leões marinhos serem apanhados pela rede. Era um pandemónio a bordo. Depois de despejado o saco do peixe no parque de pesca, o animal encurralado, fora do seu ambiente natural, com mais de quinhentos quilos, esmagava as frágeis marmotas, tentando libertar-se do cativeiro e dando urros impressionantes de desespero. A princípio não sabíamos o que fazer, o mestre de redes , o contra-mestre e os pescadores tentaram passar um laço na tentativa de içarem o leão para o convés e arrastá-lo para a rampa da popa, mas o corpo roliço  do animal impossibilitava essa tarefa.
Quando  isto acontecia todo o pescado estava perdido e gastava-se imenso tempo. A solução era matar o animal. Embora fosse um acto repugnante tinha de ser tomada essa atitude para bem do animal que estava em sofrimento e acabava por morrer  lentamente e também porque o navio tinha de continuar a pescar. Era encarregue dessa ingrata missão o mais corajoso e ousado.

 

A manga do saco com peixe malhado

 

Numa das frequentes idas a Moçâmedes, normalmente de quinze em quinze dias, para descarregar as cerca de 250 toneladas de peixe, carga máxima do navio, fomos informados que o navio ia fazer uma adaptação dos paióis da popa, normalmente utilizados como depósito de material de apoio à pesca, redes, cabos, fio, esferas de borracha para arraçal, etc., para camaratas de "pescadores".
A razão desta transformação tinha a ver com a admissão de doze tripulantes indígenas para filetar a marmota partindo do pressuposto que os mesmos eram especialistas no manuseamento de facas, como era o caso das facas de filetar. Ainda estou para saber a origem desta informação, porque dos nativos que recrutei durante as várias estadias, não encontrei grande habilidade e agilidade na filetagem da marmota.
Coube-me a mim a tarefa de escolher os doze novos "recrutas" a filetadores dentre as dezenas que formavam em fila junto ao portaló do navio, aguardando pacientemente debaixo do sol intenso a chamada.

Uma sacada de 20 toneladas

Os critérios que estabeleci para seleccionar os candidatos a embarcar foram: 1-ter cédula marítima; 2-ter boa compleição física, portanto apresentar um aspecto saudável. Não foi difícil obter os primeiros dez pretendentes. Quando procedia à segunda escolha para apurar os dois que faltavam um dos que estavam ainda na fila adiantou-se e, decidido, apresentou-se e pediu humildemente para que o recrutasse porque precisava muito de ganhar dinheiro para sustentar a família, como todos os outros. Apreciei a forma genuína, natural e humilde como se dirigiu e mirei-o para apurar do aspecto físico parecendo-me franzino mas teso. Recrutei o 11º.elemento e chamei-o de parte dizendo-lhe: - Vou-te contratar porque me pareceste sincero e natural, mas com uma condição: - se não cumprires com o trabalho não te pago. Acenou com a cabeça em sinal afirmativo, agarrou-me na mão e intentou beijá-la, acto que repeli de imediato.
Terminados os trabalhos de instalação dos beliches nos aposentos improvisados nos paióis renovados e ventilados como convinha, para receber os novos tripulantes, candidatos a filetadores, largamos de Moçâmedes em direcção aos pesqueiros, começando por largar a rede a sul do paralelo 18 por forma a fazer um lanço (operação completa de largar e virar a rede de pesca), apanhando a curva do 19 ( neste ponto o fundo faz uma curva pronunciada tipo "S" onde normalmente se faziam boas capturas).
A pesca era abundante e, se tudo corresse bem, como esperavamos, dentro de doze a quinze dias estaríamos de volta a Moçâmedes. O 12º elemento que escolhi estava a cumprir conforme o prometido. Tinha recomendado ao contra-mestre que estivesse de olho nele e eu próprio, quando saía de quarto, passava pelo parque de pesca ver como corriam os trabalhos e punha o olho de lado, disfarçando, para não dar azo a especulações dúbias e verificava que o rapaz se adaptava ao ofício e era despachado.

O parque cheio até ficar peixe no convés

Passaram-se dois ou três dias e o mestre de redes, durante o meu quarto diurno de serviço( como éramos só dois oficiais da ponte, capitão e imediato, os quartos eram de seis horas cada, eu fazia os quartos do meio dia às seis da tarde e da meia noite às seis da manhã, enquanto o capitão fazia os quartos das seis da tarde à meia noite e das seis da manhã ao meio dia), o mestre de redes veio ter comigo à ponte com ar de caso e perguntei-lhe: - Então mestre que cara é essa? Não me diga que está doente?
Eu não senhor imediato, mas temos um dos novos que nos vai fazer ir para terra mais cedo. Huumm?
Como assim, não me diga que é o "cantinflas"? ( este foi o nome com que o "baptizaram" por ele caminhar como o célebre comediante francês).
Parece que é bruxo senhor imediato !!! -retorquiu o mestre de redes espantado com a minha pontaria. De facto eu já tinha observado, das vezes que ia ao parque de pesca, o esgar de dor que o rosto moreno do pobre nativo deixava transparecer apesar de pretender disfarçar desviando o olhar.

O "Cantinflas" comigo

Ele não tinha coragem de se queixar em face da promessa que me fizera no acto de embarcar, porque queria chegar ao fim da viagem para receber o dinheiro, móvil que o trouxera ali.
Antes de embarcar trabalhava na estiva a carregar sacos de milho no porto, mas não era um emprego certo e ganhava pouco, 2$50 ao dia, enquanto no navio comia, dormia e ganhava 20$00 por dia, quase dez vezes mais, daí a enchente de pretendentes a um lugar a bordo.
Como me confidenciou mais tarde, com o dinheiro da viagem podia comprar várias cabeças de gado que permitiam sustentar os cinco filhos e as duas mulheres que tinha lá na terra para os lados de Nova Lisboa.
Quando terminei o quarto de serviço fui directamente ao paiol da popa do lado de estibordo, onde encontrei o "Cantinflas" estirado no beliche( cama estreita para ser instalada no camarote), com a perna direita esticada sobre a tábua da borda. Fiquei horrorizado com o que vi. A perna estava esburacada e um misto de pus e sangue saía pelas fendas expostas. Por baixo da perna, não para aparar a porcaria que brotava da perna, mas para suavizar o peso da perna sobre as feridas da barriga, tinha colocado uma toalha sobre a qual escorria o líquido nauseabundo e podre. Um cheiro pestilento invadia todo o compartimento, apesar da ventilação forçada, recentemente colocada, para tornar habitável aquele espaço, antes destinado a abrigar os apetrechos de pesca. Fiquei desolado e, confesso, desorientado, sem saber o que fazer.
Em toda a frota portuguesa que operava nesta zona, não existia a bordo de qualquer navio nenhum médico ou enfermeiro. Normalmente quem faz os curativos às feridas que habitualmente costumam aparecer, é o imediato.
Coube-me a missão delicada e ao mesmo tempo ingrata de tentar remediar o mal que alastrava por toda a perna do infeliz  e pobre homem.
Apesar do sofrimento estampado no rosto , o “Cantinflas” mostrava sempre um sorriso quando antes de almoçar lhe ia fazer o tratamento, retirando das pústulas ulcerosas meio balde de pestilenta matéria contaminada e mal cheirosa que retirava com as compressas e me deixava à beira de vomitar.
Durante dez dias quase não comi tão enojado ficava após o curativo. Um pão com manteiga e um copo de leite era o meu almoço. De dia para dia ia notando as melhoras e isso motivava-me a continuar. Por sua vez o infortunado nativo acatava de bons modos todas as instruções que lhe dava para precaver infecções que viessem obrigar a uma arribada forçada e consequentemente a perda de pesca para o armador e em especial toda a tripulação que dependia da quantidade de peixe processado e estivado no porão.
A pesca era abundante e o pessoal não dava escoamento ao peixe capturado. Chegou-se a parar de pescar, metendo a rede dentro e fundeando até processar a maior parte da marmota, mas a capacidade de congelação era insuficiente e não havia outra solução senão alijar( por pela borda fora) pescado que não se encontrava já em boas condições devido ter muito tempo sem eviscerar como também porque a marmota é um peixe muito sensível e pouco resistente quando se encontra prensado um sobre o outro muitas horas.
O “Cantinflas” vivia tudo isto com notória preocupação e pesaroso por não poder ajudar. Uma a uma as feridas iam secando e fechando e o rapaz queria trabalhar. Dissuadi-o e, num tom ameaçador, proibi-o de sequer tentar ir ao parque de pesca e andar sobre a perna pondo em risco a recuperação e todo o meu trabalho. Para suavizar o seu sofrimento e fazê-lo sentir útil, permiti que descascasse batatas na cozinha, sentado e com a perna apoiada.
Em treze dias apenas as duzentas e cinquenta toneladas que com a habilidade do contra-mestre era possível estivar no porão, tinham-se completado e regressamos a Moçâmedes para efectuar a descarga para os frigoríficos da ARAN. As feridas do “Cantinflas” estavam saradas, mas era preciso ir com ele ao médico para ser observado e fazer um diagnóstico.
Logo que o navio atracou o rapaz ficou eufórico e queria ir para terra sem querer saber de ir ao médico. Na opinião dele estava curado e eu era o melhor “médico” do mundo. Não queria saber de mais nada. Eu tinha-lhe salvo a vida e só isso contava para ele. Naquele seu jeito de andar à “Cantinflas”, movia-se no convés de um lado para o outro, feliz por ter recuperado o andar de que estivera privado tantos dias por impossibilidade sua e por imposição minha.
Como não havia doentes com gravidade só no dia seguinte o médico nos atendeu. No final da consulta e depois de explicado o acontecido, o médico deu-me os parabéns pelo trabalho realizado e afirmou rematando – “nem o melhor enfermeiro fazia melhor, senhor imediato”. Fiquei naturalmente contente por este reconhecimento, mas mais por ter conseguido salvar a perna do malogrado “Cantinflas”.
Quando procedia ao pagamento da viagem aos homens recrutados especificamente para o processo de filetar a marmota mais pequena, o ”Cantinflas” não queria receber.
- Siores mediato, não podê recebê porque não trabalhá . E teimava, dizendo que ainda tinha a pagar por ter sido tratado. Comoveu-me este carácter recto e humilde, agarrei-lhe na mão e “obriguei-o” a aceitar contra a sua vontade.
A estadia foi mais demorada do que prevíamos porque havia outros navios à nossa frente a descarregar e um navio transportador frigorífico, salvo o erro o” Baía de S. Brás”, a carregar peixe com destino à Metrópole.
Na véspera da partida para nova viagem o “Cantinflas” veio falar comigo, cabisbaixo, envergonhado e triste.
- Siores mediato esculpa, tê vergonha, está triste, ma na podê i na viagem.
- Mas porquê “ Cantinflas”? Nesta altura toda a gente a bordo o tratava por “Cantinflas”, alcunha que ele adorava.
- Siores mediato, mia mãe tá morrê, tenho que i vê ela. E começou de chorar, soluçando, num comovente estado de alma que contagiava e fazia vir as lágrimas aos olhos.
O “ Cantinflas” lá foi para a terra e nós para o mar. Como já não havia tempo para recrutar substituto e para efectuar a matrícula fomos para o mar com menos um filetador. Quando a viagem terminou e atracamos, lá estava no cais o “Cantinflas” à espera do navio, sorridente e feliz.
Mal entrou a bordo, veio directo ao meu camarote eufórico querendo transmitir-me algo importante.
- Que se passa “Cantinflas”? perguntei surpreendido pela forma como ele se dirigiu a mim.
- Siores mediato “Cantinflas “ tem presente pa siô. Refutei imediatamente qualquer presente e mandei-o dar uma volta e que não me chateasse.
- Ma siô na podê recusá é ofensa. É milhó prenda que pode ofrecê.
O “Cantinflas” saiu cabisbaixo, amuado com a minha recusa. Eu sabia a natureza do presente e por isso recusei.
É habitual entre os nativos, em sinal de reconhecimento por algo de importante que fazem por eles, comprar uma rapariga virgem para oferecerem de presente a outra pessoa. Isto faz parte da cultura deles, ficam muito ofendidos quando tal retribuição não é aceite, como foi o meu caso. Eu já tinha previsto que tal iria acontecer, mas era contra os meus princípios aceitar tal presente, mesmo que isso fosse de encontro às tradições culturais da etnia a que ele pertencia.
A bordo, fui censurado por alguns, mas também louvado por outros. De qualquer forma, fiquei de consciência tranquila por assim ter decidido.
O “Cantinflas” não foi na viagem seguinte, tendo ficado ofendido comigo pela rejeição. Segundo a tradição cultural do seu povo é um ultraje e uma ofensa imperdoável que devia ser remida através duma luta entre os dois.
Mais tarde vim a saber que o “Cantinflas” regressara à sua terra e não mais embarcara.
 
 

 

 

publicado por dolphin às 15:36
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03
Jul 07

A costa de Angola

 

Estava ansioso por conhecer Luanda. Não só pela beleza natural de que goza fama como também porque já tinham passado muitos dias desde que deixamos o Funchal e, para um marinheiro de primeira viagem, começava a tornar-se cansativa a vida a bordo. Precisava esticar as pernas, ver gente...

Quando por volta do meio dia o criado me veio chamar para almoçar, já eu estava a pé no tombadilho das baleeiras por ré do meu camarote que ficava ao lado do telegrafista junto à TSF. Preferi este camarote, embora me fosse dado à escolha o do 3º piloto que ficava por baixo da chaminé do navio, mas o Orlando avisou-me que era muito quente e como vínhamos para África era boa escolha o do praticante que dava para o tombadilho das baleeiras.

O navio navegava sereno junto à costa Angolana depois de passarmos o Ambriz , rumo a Luanda onde devíamos chegar a meio da tarde.

 

 

Vista do mar a ilha do Mussulo , com as palmeiras e coqueiros verdes por sobre a areia branca da praia contrastando com o ocre da falésia por cima, parecia um cenário de miragem de oásis ameno e acolhedor ao fim duma extenuante caminhada pelo deserto. Daí a pouco entravamos na baía de Luanda, com a cidade por bombordo e a ilha do Mussulo por estibordo.

Estava finalmente na bela Luanda com a extensa marginal ornada de coqueiros, reflectindo nas águas calmas da baia o casario baixo, entrecortado de arvoredo, destacando-se o "mamarracho" do edifício do BCA .

 

 

 

Foi uma estadia memorável que passei nesta bela e acolhedora cidade e na aprazível e encantadora ilha do Mussulo , mas cedo acabou a boa vida, tínhamos de continuar a viagem ao longo da costa angolana.  

Depois de Luanda seguiam-se os portos de Porto Amboim e Novo Redondo, sem cais de atracação onde descarregávamos para batelões alguma carga e começávamos a carregar café para a Metrópole.

Num dia de folga, aproveitei uma ida a terra em Porto Amboim levar umas cartas ao correio local para na volta ir à praia tomar um banho nas maravilhosas águas  equatoriais dentro da área protegida dos tubarões que frequentemente visitam a praia deixando por vezes a sua marca mortífera.

Lobito foi o porto seguinte. Tem uma configuração geográfica muito semelhante a Luanda, com a Restinga a substituir a ilha do Mussulo , embora o porto e a cidade se situem no lado oposto a Luanda mas que em nada a desmerece em beleza. É um local inesquecível na minha rota marítima, porque foi lá que festejei os meus 22 anos com um sabor tropical inimaginável.

 

 

Moçâmedes - Praia da miragens

 

A princesa do Namibe - a bela Moçâmedes - era o porto seguinte onde iríamos descarregar o resto da carga oriunda da Metrópole. Esperava-nos uma estadia prolongada porque estava previsto o embarque dum grande carregamento de milho ensacado e a granel  para Cabo Verde.

Aqui passei o Natal. O primeiro fora da família, do lar, do ambiente tradicional, num clima quente ao contrário do habitual em ambiente frio ao calor da lareira. Não soube a Natal. A nostalgia invadiu-me e senti a falta de tudo aquilo que fora habituado ao longo dos anos; do aconchego do lar e da família, das rabanadas e outras iguarias típicas desta época natalícia, , do frio e da neve.

Nesta primeira estadia em Moçâmedes não retenho boas recordações dignas de registo. Foi tudo muito desinsabido e desinteressante. Achei a cidade agreste e quente ao contrário daquilo que anos mais tarde vim a sentir. 

 

 

publicado por dolphin às 18:54
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01
Jul 07

Equador

À medida que nos aproximavamos do continente africano aumentava o calor, diminuía o vento e abonançava o mar.

O cheiro de Àfrica pairava no ar que respiravamos. Estavamos perto de terra. A rota tangente que o capitão traçara  em direcção ao cabo Verde estava prestes a aproximar-se do ponto de viragem de rumo.

O capitão viera à ponte ligar o radar na presença do imediato e do telegrafista. Era um ritual habitual nos navios mercantes nessa época. O radar estava fechado à chave e só o comandante tinha acesso, ou o telegrafista em caso de avaria. O radar era um auxiliar de navegação pouco em voga nos navios da Marinha de Comércio e só era utilizado nos pontos estratégicos de aproximação a terra, na dobragem de um cabo ou em zonas com corredores de tráfego, caso do Canal da Mancha, Gibraltar, etc.

Não fora o radar e não nos aperceberíamos da passagem do cabo Verde devido à distância considerável que o dobramos e à natureza da costa relativamente baixa. Por outro lado, a proximidade dele era evidente pela afluência significativa de navegação nos dois sentidos, sinal que estavamos a passar por uma zona congestionada de tráfego, sintoma evidente de um ponto de passagem habitual.

O mar tornou-se estanhado. Durante o quarto da noite, no silêncio, sómente o marujar do deslocamento do navio ecoava na imensidão do oceano acompanhado do ritmado barulho dos motores do navio, a que já nos habituamos ao fim de alguns dias de navegação e que a princípio não nos deixava dormir. 

Aproximavamo-nos do Equador, esse mítico e invisível paralelo de círculo máximo que todos os marítimos desejam passar apesar das praxes tradicionais impostas a quem o cruza pela primeira vez.

Para além de um banho de mangueira em sinal de baptismo, que soube bem pelo calor que se faz sentir nestas latitudes, sinceramente não me recordo do "castigo" que me foi imposto pelos ditames do Deus Neptuno. Recordo-me, isso sim, duma grande festa por ré do casario, sobre a escotilha do porão nº 4, com um toldo montado por causa do sol abrasador e mesas improvisadas pelo carpinteiro para toda a tripulação comer.

 

Cabinda

Sob um sol abrasador e inclemente navegamos para Cabinda, onde devíamos chegar pela manhã para começar a descarga.

Era por volta das duas horas da manhã quando no horizonte, pela proa do navio, avistei um clarão luminoso alaranjado que, à medida que nos íamos aproximando, se tornava mais brilhante dum amarelo alaranjado forte. Parecia que o mar estava a arder. Daí a pouco o mistério desvendou-se, começaram a surgir do mar labaredas de fogo expelidas das torres das plataformas petrolíferas. Estavamos a chegar à zona off-shore de extracção de petróleo de Cabinda.

Saí de quarto antes do navio "Ganda" fundear em frente ao porto de Cabinda, que nessa altura ainda não tinha cais de atracação para navios de grande calado. Apenas pequenos navios de cabotagem tinham acesso directo a um pequeno cais onde os batelões, utilizados no transporte da carga oriunda dos navios provenientes da Metrópole, atracavam.

O Ganda esteve alguns dias ancorado na baía de Cabinda à descarga de diversas mercadorias, entre elas vinho em barris, aguardente e calçado.

Não mais me esquecerei duma cena que presenciei a bordo de um batelão atracado no lado de estibordo do navio. Na primeira lingada de barris que foi despejada no batelão, um dos estivadores fez sinal ao homem do guincho para colocar um barril de 100 litros no convés do batelão à proa e, com uma espicha (varão de ferro afiado numa extremidade, usado para abrir ilhós e a cocha dos cabos) furou o tampo do pipo e, em pé, no porão do batelão, aparava com a boca o vinho que jorrava do buraco aberto pela espicha. Bebeu até se satisfazer da "água de Lisboa", (nome dado pelos nativos ao vinho) dando a vez aos outros que o imitaram na ingestão do tão precioso néctar. Não será necessário dizer o que aconteceu a seguir, pois todos sabemos o que acontece quando se exagera com este tipo de bebida.

 

 

 

publicado por dolphin às 19:19
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24
Jun 07

Ao fim de dois anos na E. Náutica na Rua do Arsenal, terminava o chamado Curso Geral de Pilotagem. Esperava-me agora a vida profissional a bordo dos navios.

Após uns dias na capital para ultimar os preparativos com vista a obter a cédula marítima (espécie de passaporte que me iria permitir embarcar em qualquer navio da marinha mercante portuguesa), fui passar uns dias à terra.

Tive a sorte pelo meu lado, quando no dia 15 de Agosto de 1969, na Borralha , perto de Águeda , juntamente com uns amigos de Lisboa, tivemos um acidente. O carro em que seguíamos , bateu noutro que estava estacionado na berma da estrada, capotou e apesar do aparato  ficamos ilesos, com excepção do motorista que teve de ir ao hospital onde lhe foi diagnosticada uma entorse no pé esquerdo que ficou preso no pedal do travão. 

Depois de umas férias curtas na terra, havia que regressar a Lisboa afim de preparar o embarque no N /M Ganda " da Companhia Colonial de Navegação, o navio-escola " da companhia no dizer do segundo piloto Orlando Lopes, que me recebeu a bordo com muita amizade e cordialidade, pondo-me à vontade e presenteando-me com um jantar  numa marisqueira em Algés. Jamais esquecerei esta faceta da minha vida e o Orlando Lopes a quem perdi o rasto e não mais consegui contacto.

 

 

Junto ao Ganda em Moçâmedes em 1971

O Comandante era o Armando Artur Soares Machado, que vinha de exercer as funções de 2º. Comandante do "Santa Maria", paquete que a companhia inicialmente me havia destinado, mas que eu recusei. O Imediato era o Armando Vicente e o contramestre era o algarvio Maio. Havia um fiel do porão nº 4, de nome Henrique, natural de Peniche que fazia quarto de navegação comigo. Outros havia que tenho presente a fisionomia mas que não consigo associar o nome. Foram duas viagens a África maravilhosas e que constituíram o meu baptismo de mar.

 

A Madeira

 

Depois de irmos a Leixões onde carregamos calçado e vinho, voltamos a Lisboa terminar o carregamento.

À saída de Lisboa o comandante traçou rumo para o Funchal. Ninguém sabia deste pormenor excepto o comandante, porque estávamos em tempo de guerra (Guerra do Ultramar ou colonial)  o navio transportava material bélico e o convés estava repleto de tambores de gasolina para aviões, altamente inflamável.

 

 

Passado Porto Santo, de imediato se avistou a ilha da Madeira e poucas horas depois desfrutava a bela paisagem da cidade do Funchal que me ficou na retina para sempre. 

A razão do desvio da nossa rota era o abastecimento de nafta (combustível do navio) que habitualmente era feito em Las Palmas de Gran Canária mas que nesta viagem fora estrategicamente determinado ser feito no Funchal por motivo de segurança.

Com pena deixamos o Funchal pela popa. A estadia (tempo em porto) foi curta, somente o necessário para abastecer. Mal deu para escrever um postal e ir ao correio depositá-lo.

Durante a noite, revelou-se a minha inexperiência, no momento em que comecei a ver cair faúlhas no convés que se mantinham incandescentes alguns segundos por sobre os bidões de gasolina.

Que fazer?

Esta questão martelava a minha cabeça incessantemente, sem encontrar resposta adequada. A minha posição a bordo era naturalmente de praticante de piloto de 1ª viagem (trancas), como se diz em linguagem marítima, sem qualquer função responsável, mas subordinado e sob a responsabilidade do capitão do navio. Fazia quarto com o capitão que era o meu tutor de estágio e por isso nada fazia sem lhe dar conhecimento.

A solução estava encontrada, havia que chamar o comandante e ele decidiria o que fazer ou não fazer perante esta situação que à minha vista e na minha ignorância aparentava ser perigosa.

Senhor Comandante pode chegar à ponte! - O comandante estava sentado no camarote a ler, mesmo ao lado da ponte e veio imediatamente logo que o chamei.

Não foi preciso descrever-lhe o que se estava a passar. Observou preocupado as faúlhas que continuavam a cair nos bidões por vante da ponte, impelidos pelo vento do quadrante norte que soprava da popa. Passado pouco tempo dirigiu-se à casa de navegação e traçou rumo a passar por fora das Ilhas Canárias.

Governa a 220º. - Disse para o timoneiro (marinheiro do leme).

Durante algum tempo observou o movimento das faúlhas que começaram a cair na água pelo lado de bombordo (lado esquerdo relativamente ao movimento do navio) apagando-se em contacto com a água.

No dia seguinte o vento abonançou e mudou de direcção possibilitando restabelecer o rumo em direcção ao Cabo Verde, ponto tangencial da nossa rota em direcção a Angola.

publicado por dolphin às 23:28
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17
Jun 07
O regresso à Terra Nova
 
Os franceses começaram a debandar. Uns regressaram a França, caso do “Colonel Pleven” e do “Marie de Grace”, que me lembro, os que ficaram dispersaram-se à procura pelo Mar de Barents, Ilha dos Ursos, Spitzbergen e costa Norueguesa sem jamais se encontrar um contacto credível. Foi então que os portugueses voltaram a conferenciar e decidiram regressar à Terra Nova para aí terminar a viagem.
Entretanto outros navios saídos de Portugal que iam com destino à Noruega, inverteram a rota e rumaram à Terra Nova, lembro-me do Santo André que nem chegou a largar a rede.
Esperava-nos uma longa viagem de cerca de duas mil milhas, ou seja, cerca de seis a sete dias de navegação em condições normais de mar e vento, se não tivéssemos nenhum contratempo como acontecera na vinda com o campo de gelo.
Assim não aconteceu porque a rota foi efectuada mais pelo sul a caminho do Flemish Cap (banco de pesca mais oriental da Terra Nova) passando pelo norte das Ilhas Faröe.
A viagem foi aproveitada para fazer reparações nas artes de pesca que devido à falta de conhecimento dos pesqueiros se danificaram mais do que o previsto.
Na Terra Nova as capturas haviam melhorado, os navios que lá se encontravam tinham efectuado na última semana consideráveis quantidades no Grande Banco. Uma curta passagem pelo Flemish Cap só para tirar dúvidas e no dia seguinte estávamos a pescar no aglomerado de navios surtos no denso nevoeiro que cobria toda a área do Great Bank.
Russos, espanhóis, ingleses e portugueses naturalmente, varriam toda a zona com as redes de pesca que se cruzavam tangencialmente até que dois deles engataram portas e redes a que se lhe juntaram outros debaixo do manto espesso de nevoeiro que não deixava antever o que se passava. Que confusão! Que “molhada” se formou e que dificilmente se iria desenvencilhar sem demoras e sem estragos nas artes. Para mais a falta de comunicabilidade era um impedimento a ter em conta, estavam envolvidos navios de diversas nacionalidades qual torre de Babel.
Percorridos os pesqueiros tradicionais, Horta, Cú do Banco, Flemish, Labrador, Grande Banco, na busca do tão desejado Gadus Morhua (bacalhau), chegou a altura de ir a terra abastecer de combustível e víveres e retemperar forças para nova etapa.
Todos nós ansiávamos pelo dia de arribar à mítica cidade de St. John’s da Terra Nova. Para mim, novato nestas andanças bacalhoeiras, era a primeira vez, por isso mais expectante se tornava a almejada quão tonificante estadia na capital da Terra Nova.

Entrada de St. John’s vista de Signal Hill
 
A estadia foi curta, porque a pesca assim o exigia, mas suficiente para superar desânimos e frustrações acumuladas na fruição diária da insípida e dura vida a bordo.
Apesar do pouco tempo em terra, depois das leituras da correspondência que nos deixa saudosamente tristonhos e abatidos, há sempre um tempinho para alegrar e dar largas à folia contida nos meses de solidão, visitando os bares e night-clubs habituais para beber um copo… ou mais e tentar mais não sei o quê. Só tentar!...

 

St. John’s - Memorial University of Newfoundland
Partíamos para a última etapa desta pouco proveitosa (creio que pescamos cerca de 16.500 quintais, mais o peixe congelado, nessa altura ainda numa fase experimental) mas diversificada e enriquecedora viagem de pesca, que me permitiu percorrer todas as possíveis zonas de distribuição do bacalhau, logo na primeira viagem.
Que experiência memorável!
 
publicado por dolphin às 17:34
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16
Jun 07
Sol da meia noite
 
Era meia noite quando saímos de Hammerfest e o sol mantinha-se acima do horizonte envolto numa atmosfera dourada de raios de luz amarelo pálido que se escoam por entre as montanhas escarpadas que contornam os fiordes profundos da costa recortada do norte da Noruega.
 

 
O sol da meia-noite no Cabo Norte (Nordkapp), Noruega
Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
 
Fora do porto aguardava-nos o Santa Cristina que esperava fazer serviço para receber os planos copiados por mim do original para poder entrar em Hammerfest com segurança e depois passar as outras três cópias aos navios que as tinham pedido ao capitão do Lutador.
Num mar estanhado, caldeado pelos tons metálicos do sol da meia noite, navegamos para nordeste rumo ao cabo Norte onde o sol da meia noite me pareceu mais espectacular, cintilando em tonalidades de um dourado pálido e mortiço como que a pedir que o deitassem para repousar de tantos dias sem descanso. Estávamos em pleno mar de Barents, avistamos alguns navios soviéticos na faina da pesca e largamos a rede numa zona desconhecida com fundos de lama segundo indicação da carta náutica.
Nestas latitudes para além do Círculo Polar Ártico, no Verão o sol mantém-se 67 dias acima do horizonte sem haver pôr-do-sol. Para nós que não estamos habituados a esta claridade e necessitamos de descansar porque o trabalho é por quartos (turnos), a solução encontrada para provocar o escuro foi forrar com papel, plástico ou pano de cor escura as vigias do camarote.
 

 

Sol da meia-noite à saída de Hammerfest, na Noruega
 
Um dia quando pescávamos nesta zona do mar de Barents o imediato quando virou a rede saiu-lhe em sorte uma sacada monumental de “limões”, espécie da família das esponjas mas com uma particularidade, possui uns picos cortantes tipo lã de vidro e é de difícil despejo, ficando presas umas nas outras e cortando as malhas da rede e do saco com as tentativas de as despejar. Para além de se ter perdido um tempo imenso, cerca de três horas para despejar o saco, a rede ficou toda traçada, imprópria para utilização futura.
A antecipação ou iniciativa própria não constituiu nesta viagem o forte dos portugueses que andaram toda a viagem às sobras dos franceses, talvez porque desconheciam a zona e não arriscavam meter-se em aventuras que pudessem ser-lhes prejudiciais. Mais uma vez os franceses um a um desapareceram do mar de Barents e passados dois dias anunciavam boas capturas no Svalbard.
Após conferência entre os capitães, nova emposta para o Spitzbergen e mais uma vez chegamos atrasados. A pesca em zonas baixas é ingrata. O bacalhau pelas suas características hidro-morfológicas e ambientais é um peixe omnívoro e muito voraz que é atraído por outras espécies de peixes como o sandilho, o capelim, a lula e, nas zonas de baixa profundidade relativa para a espécie, corre grandes extensões em busca de engodo. Quando se tem a sorte de andar no encalço do fiel amigo consegue-se fazer óptima pesca.

In “ A Epopeia dos Bacalhaus”
Capelim
 
A pesca estava a rarear. Haviamos percorrido todos os pesqueiros do Atlântico Nordeste e nem sinal do tão famigerado gadiforme.
publicado por dolphin às 19:09
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15
Jun 07
Hammerfest

 
 
Uma vista de Hammerfest em 1970
 
Continuamos a pesca na Noruega, Mar de Barents, Ilha dos Ursos e Spitzbergen, confiantes e crentes nas informações de pesca dos nossos amigos franceses que se antecipavam sempre. Entretanto outros navios portugueses já se nos tinham juntado, os popas “Luís Ferreira de Carvalho”, comandado pelo capitão Humberto Martins e o “Inácio Cunha”, a fazer a primeira viagem sob o comando do capitão Vitorino Ramalheira. Chegavam notícias doutros navios clássicos que vinham a caminho da Noruega, uns partindo directamente dos portos portugueses, outros da Terra Nova onde a pesca estava praticamente nula. Não é que a pesca nos mares do Nordeste Atlântico, onde os portugueses pescavam pela primeira vez estivesse famosa, mas as informações escassas da Terra Nova e alguma curiosidade por novas zonas de pesca motivava os navios à descoberta e à aventura. Era o caso do Santo André e David Melgueiro que estavam em rota para a Noruega.
Antes da emposta (ir de rota para outro pesqueiro) para o mar de Barents, onde mais uma vez os franceses anunciavam capturas dignas de registo, havia necessidade de ir abastecer a Hammerfest, a cidade mais setentrional do mundo, onde diz a lenda, até os cavalos se espantam quando deixa de chover. Era a primeira vez que um pesqueiro português ia a este porto Norueguês, como era a primeira vez que os navios portugueses demandavam tais paragens, por isso não estavam equipados com cartas náuticas de aproximação a este porto, (planos) com excepção do Lutador.

 
A praça principal de Hammerfest em 1970
 
Como o porto era pequeno e o cais não comportava mais que um ou dois navios resolveram ir um de cada vez, começando pelo Lutador que tinha carta náutica e ainda não tinha abastecido. Os outros pediram para comprar cartas náuticas de Hammerfest, mas estavam esgotadas e fui incumbido pelo capitão de copiar a única carta que havia para os outros navios, tarefa que me impediu de durante o dia que estivemos em terra poder passear pela pequena cidade.
Apesar disso fiquei com uma imagem agradável desta pequena mas simpática cidade piscatória da Lapónia Norueguesa, situada a pequena distância do Nordkapp (Cabo Norte) o ponto continental mais setentrional da Europa. O povo Lapão e as renas encantaram-me e guardo na minha memória gratas recordações do pouco tempo que lá passei.
publicado por dolphin às 19:43
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